quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Quinto dia)


DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO - 24.01.2018
CARTAS: NONA E DÉCIMA



Meu caro Abner,

Recebi sua carta. Coincidiu com a melhora das últimas indisposições que o resfriado me criou. Por isso não me assustei tanto com a história da janela. Ver a morte? Não quero, ao menos por enquanto.
Sempre tive medo da velhice. Receio que a vida não permita a realização dos meus sonhos. Não deve ser fácil perceber que o tempo passou e que as coisas não aconteceram como esperávamos.
Confesso que fiquei assustado com a proposta do jardim. Não tenho conhecimentos para isso, meu querido mestre. Construir um jardim requer ciência. O meu, se tivesse de fazê-lo, seria uma afronta às regras da Jardinagem. Não me atrevo a fazer o que não sei. Reconheço meus limites. Iniciei ontem minhas férias e quero aproveitar este tempo para atualizar minhas leituras, mas estou muito distraído. Tenho conseguido pouquíssimos resultados. Para usar a mesma linguagem que você, posso dizer que este luto não tem sido fácil de ser organizado. Clara não sai do meu pensamento. Este trauma está difícil de ser curado. As marcas que ela deixou em mim são profundas e definitivas.
Gostei dos argumentos com os quais você justifica a sua retirada da vida social. Nunca havia pensado no aspecto positivo da velhice. Como já lhe disse, eu sempre considerei o  envelhecimento como algo vergonhoso, humilhante. Perder os controles, a vitalidade, adoecer. Nunca havia pensado nos direitos que brotam dessas realidades. Como você já disse anteriormente, eu sofro de juventude. Estou adoecido pela necessidade de realizar-me, de ir além. Confesso que não estou desejoso de que chegue logo a minha aposentadoria. Ainda não sei pensar em nada sem que Clara esteja participando do pensamento. É quase uma tortura. Por vezes, ouço o som de sua voz, como se estivesse andando ao meu lado. É como ter sede no deserto. A ausência da água faz o andante enxergar o oásis.
Concluo, meu velho e aposentado professor, que o amor provoca delírios. Ele me põe num contexto de necessidades que nunca terão fim. Estou ainda mais impaciente comigo mesmo. Em casa não tenho conseguido conversar, tampouco interessar-me pela rotina de minha família. Tudo está pesado, enfadonho.
Este amor que tenho por Clara é uma espécie de sede que não há água que possa matar. É uma sede que me faz esquecer da vida real. Quero somente a visão artificial do oásis. É como se eu estivesse vivendo a negação constante da realidade que me envolve. Amo e espero o tempo todo. Espero que volte, que me peça perdão por tudo o que me fez sofrer, que diga que foi engano, que ainda me ama e que o florista foi apenas uma ilusão passageira.
Confesso que esse é o destino final que quero para a minha história, Abner. Ver o retorno de Clara será a maior de todas as felicidades já experimentadas até o dia de hoje. A propósito, o que é a felicidade para você?
Com meu carinho,   
Alfredo


Meu caro Alfredo, 

Que pergunta ingrata! Estou cada vez mais convencido de que você gosta mesmo de perguntas que não podem ser respondidas. O que sei sobre a felicidade? O que dela experimentei. Ao longo destes anos vividos, muitas vezes eu reconheci que meu corpo estava visitado por uma satisfação diferente. Uma satisfação não brotada de motivos. Uma sensação que nascia sem que eu pudesse conhecer suas causas. Era como se uma realidade imaterial se hospedasse em meu corpo, criando um estado de harmonia, que assim como vinha também partia. A breve passagem sempre funcionou como um indicativo de que estava no caminho certo.
Compreendo a felicidade dessa forma. Viver confortável em mim mesmo, e vez ou outra receber a confirmação que me vem pelas sensações. Reconheço minha felicidade escondida em coisas miúdas. São pequenas interferências que quebram o cotidiano e sua continuidade. Por um instante, a vida parece parar. O coração descobre um novo jeito de enxergar o sempre visto, o mundo que nunca muda, e nele encontra um motivo para sorrir, ainda que a vida ande escassa de alegrias. Custa a gente aprender, mas nem sempre a felicidade estará de braços dados com a alegria. A alegria sobrevive de motivos externos. Felicidade não. É mais profunda. Não depende das alegrias para que seja real. É possível ser feliz mesmo quando não estejamos alegres. Em muitos momentos árduos da vida eu permanecia feliz. Por quê? Eu tinha certeza de que estava no lugar certo, fazendo a coisa certa.  A realização humana, raiz de toda  felicidade, consiste em saber-se a pessoa certa no contexto das escolhas feitas. Encontrar conforto, ainda que a vida esteja pesada, porque sabemos que estamos onde erdadeiramente deveríamos estar. É o sacrifício salutar. Reconhecer que, mesmo na ausência de alegrias, a felicidade permanece motivando a luta.
Quanto ao jardim, ainda penso que você poderia considerar melhor minha sugestão. Mais uma vez você demonstra dificuldade em compreender as coisas simples. Eu não sugeri que você construísse um jardim a partir das regras da Jardinagem, meu caro Alfredo. Eu sugeri que você construísse o seu jardim. Só isso. Não lhe sugeri a construção de um jardim modelo. Sugeri um jardim que fosse fruto do seu empenho, ainda que contrariasse todas as regras da boa Jardinagem. O mais importante na minha sugestão é o empenho na construção, e não o resultado.
Cuidado para não pensar e agir como a maioria das pessoas. Cuidado para você não se ocupar demais com a busca de resultados. Nem sempre o produto final é o mais importante. Por vezes a riqueza se esconde é no processo das descobertas. O resultado é quase nada perto das oportunidades que o processo nos entrega.
 O dito popular parece ter razão. “O melhor da festa é esperar por ela.” Há muita sabedoria nessa premissa. O tempo que nos separa das realizações está prenhe de encantamentos. É só descobrir. 
Alfredo, quando a gente descobre que o processo do ir é tão importante quanto o processo do chegar, a gente diminui a possibilidade da frustração final. Quem vive para os resultados corre um risco muito alto de se frustrar. Mas se a gente vive cada passo do processo como parte de um desejo que se prolonga, de um desejo que se desdobra, então fica mais fácil driblar e evitar a frustração final. A viagem já valeu, mesmo que o destino final não tenha sido como nós esperávamos que fosse.
Este é um erro recorrente entre nós. A gente insiste em viver para os resultados. Com isso, não percebemos a graça escondida nos preparos. Queremos a meta final, e cegamente nos  encaminhamos para ela. Mas, na pressa de chegar, deixamos de olhar para os lados, e com isso não percebemos que o caminho é belo, e que há matizes interessantes a serem  observados.
Alfredo, tenho aprendido que preparar a felicidade já é um jeito de ser feliz. Durante a reforma desta casa onde agora vivo, aprendi muito com minha esposa. A iniciativa do restauro foi dela. Eu estava ansioso para ver tudo terminado. Facilmente perdia a paciência. Não estava lidando bem com o período das demoras que são naturais numa obra. Certa vez, num momento de profunda irritação, enquanto eu esbravejava implorando por pressa, ela me tomou pelo braço, afastou-me até a cozinha e sorrindo me disse que, se eu não aprendesse a saborear as esperas, aquela reforma iria me matar infartado. Ela tinha razão. Diferente de mim, minha esposa vivia a reforma de maneira prazerosa. Ela encontrou sentido em ver e acompanhar o processo do restauro que as paredes careciam. O que para mim era tortura para ela era prazer.
Depois eu modifiquei o meu olhar sobre a obra. A casa abrigava lembranças preciosas da minha infância. Ver o seu restauro era como reacender dentro de mim a vida que estava adormecida. Minha esposa me fez ver a mística que pode nos desacelerar o passo, sem que isso pareça prejuízo.
Na Faculdade eu observava em meus alunos as mesmas ansiedades que existiam em mim no tempo em que eu era aluno. A preocupação maior era a prova final. Queriam saber como seriam avaliados. Eu insistia que o ato de aprender é bem mais importante que o ato de demonstrar o que aprendeu.
O resultado de uma prova pode dizer muito pouco sobre o verdadeiro conhecimento do aluno. Mas não era um aprendizado fácil. A ansiedade pelo resultado final cegava muitos, impedindo-os de alcançar um crescimento efetivo com o que era ensinado.
Por isso eu lhe recomendo, meu novo amigo. Esqueça um pouco o que você já sabe sobre os jardins. Porque o que você sabe sobre os jardins é que você nada sabe sobre eles. Esqueça que não sabe. Conhece aquela história do menino que conseguiu resgatar o amigo que pesava duas vezes mais que ele no momento em que o amigo afundava numa lagoa? Como ele conseguiu? Não havia ninguém ao lado para dizer que ele não seria capaz.
Portanto, nada de antecipar-se como incapaz. O jardim é um lugar vivo, dinâmico.  Por isso os erros farão parte do processo. Mas junto dos erros virá o aprendizado. Comece, mas sem medo. Aproxime-se da terra e deixe que ela lhe sugira uma ação inicial. Olhe para as sementes e experimente cada uma delas. Construa o seu jardim aos poucos. Descubra a lógica, por você mesmo. O processo de feitura será tão belo que talvez chegue a superar a beleza final. Ou se quiser pensar diferente, e chegar ao mesmo ponto, é só pensar que a beleza final só é possível quando vista a partir da beleza que há no processo que a tornou concreta.
Meu caro Alfredo, por que insiste tanto em querer a finalidade de tudo? Não sofra tanto de juventude! Cuidado para não transformar sua inteligência num instrumento de medidas. Nem tudo na vida precisa ser meticulosamente calculado. Você está sendo injusto consigo mesmo.  tudo você quer mensurar, dissecar, ter certezas. Ó meu jovem, quanto encanto está escondido na dúvida, no meio do caminho, no incerto.
Ontem mesmo fiz uma reflexão interessante. Quis entender a razão de minhas avencas não sobreviverem dentro do meu escritório. Na sala elas crescem, mas no meu escritório elas morrem. Estranho isso. O ambiente é semelhante. O mesmo tanto de luz, as mesmas  aberturas de janelas, mas os resultados não são os mesmos.
Não sei o que se passa. Minhas avencas e suas razões secretas. Quis entender, mas diante do mistério resolvi me calar. Melhor é respeitar as preferências que elas têm. Preferem a sala ao escritório. Pronto. Eu sou diferente delas. Eu já prefiro o escritório. Quando não estou no jardim, gosto de ficar próximo dos meus livros, de minhas anotações tão cheias de equívocos e belezas veladas. Coisas que escrevi, e que nem eu mesmo já sei entender. Nasceram da crença e não do entendimento.
Há coisas em que só sei acreditar, mas ainda não sei entender. Eu olho para as avencas da sala e não entendo sua preferência por ficarem ali. Então, só me resta acreditar neste motivo abscôndito, sem a necessidade de interpretá-lo.
Fico pensando que pessoas são como avencas. Morrem se estiverem no lugar errado. Cada uma tem o seu local de identificação, e isso deve ser respeitado. Infelicidade talvez seja isso, meu caro Alfredo: ficar no lugar errado e sentir que o erro está nos matando aos poucos. Já vi pessoas certas nos lugares errados. A inadequação é uma forma de morrer antes do tempo. Já observou que há pessoas que se acabam antes mesmo de morrerem?
Fiquei sabendo que na China há um rio chamado Amarelo. Ele é diferente de todos os outros rios que há no mundo, por uma razão muito simples. Ele acaba antes de morrer. Já me explico, pois sei que sua inteligência já está incomodada com esse jogo de palavras, e certamente já se pergunta “Acabar e morrer não são a mesma coisa?”. Creio que não. Aqui, neste caso, morrer é mais que acabar.
Ao dizer que o destino de todo rio é morrer no mar, isso nos sugere que haverá uma transformação. O que temos é a possibilidade de continuidade. O rio, ao morrer no mar, no mar se transforma. Ganhou da vida uma nova maneira de continuar.
Ao se misturar em outras águas, ele entra numa nova perspectiva, avança, transforma-se, torna-se mais. Mas quando digo que o rio acaba, isso nos sugere que ele não alcançou o lugar da transformação. Ele acabou antes de morrer. Acabar é uma forma de ficar pelo caminho, pela metade, sem nenhuma possibilidade de continuidade. O rio Amarelo acaba porque não tem forças para ir além. Não tem águas suficientes para que se encaminhe ao seu destino. A morte, dom que o transformaria em mar, nunca é alcançada por ele.
Como isso é triste, meu caro Alfredo. Não há remanso suficiente para conduzi-lo ao seu mistério final. Faltam-lhe afluentes, águas fraternas que lhe emprestem corpo para chegar. Por isso ele acaba antes de morrer.
Alfredo, meu caro Alfredo, permita-me uma única pergunta, antes de despedir-me por hoje.
Qual é o ensinamento que minhas avencas e este desconhecido rio Amarelo da China poderiam deixar-lhe nesta tarde fria de inverno?
Ó meu querido companheiro, não tenha pressa em responder a essas questões! Não se submeta ao fatídico destino do rio. Não permita que estas palavrinhas bobas acabem antes que elas possam morrer em você.
Com ternura e amizade,
Abner


2 comentários:

  1. Cartas lindas.Estou gostando muito, principalmente das cartas de Abner

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  2. Ei, leitora assídua...sentindo sua falta...rsrsrr... Ele é um sábio, não é? Obrigada pelas visitas...Continue deliciando-se. São ensinamentos fantásticos. Para mim, só vale a pena...beijos no coração!

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