DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO 25.01.2018
CARTAS: ONZE E DOZE
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO 25.01.2018
CARTAS: ONZE E DOZE
Meu caro Abner,
Instigante a sua carta. Ainda continuo pensando na
inutilidade de dispensar meu tempo na construção de um jardim, mas prometo não
enterrar este conselho. Preciso confessar-lhe que nossa correspondência tem
sido o único fator que me provoca esperança. Leio e releio seus escritos. Levo
horas e horas debruçado sobre suas palavras e, mesmo que com elas eu não
concorde, tenho permitido que elas passeiem dentro de mim. Você tem diminuído a
minha solidão.
Não é fácil sofrer sozinho. Não tenho ninguém com quem
partilhar minhas angústias. Clara ainda continua visitando-me nos sonhos. Chega
apressadamente e da mesma forma se vai. Eu fico. Não sei aonde ir, não tenho
aonde chegar. A dor tem o poder de neutralizar iniciativas. Estou apático,
incapacitado de procurar sonhos que possam me fazer recomeçar. Às vezes eu
penso que poderia ser interessante ir visitar uns familiares que tenho na capital.
Respirar outros ares poderia me fazer
bem. Mas até para a viagem eu estou indisposto. Gostaria de descobrir um jeito
de chegar, mas sem ter de ir.
Sua pergunta final é quase um desacato. Sinto-me tal qual o
rio Amarelo. A diferença é que não sou
chinês. Tenho os olhos abertos, bem abertos, mas não tenho enxergado muita
coisa.
Como você bem disse, o destino triste do rio é não ter
afluentes. É a única razão para que não chegue ao destino final. Um rio só
chega ao mar depois de ter recebido outros rios pelo caminho. É a mixórdia do percurso, quando na solidariedade
de encontros o rio vai se agigantando, deixando de ser só, tornando-se outro. A
analogia me fez bem.
Eu não poderia deixar de confessar. Sua carta me fez pensar e
concluir que não tenho amigos. Nem úteis, nem inúteis. Sei que você ainda
espera pela resposta que não lhe dei. Aquela pergunta me assusta. Tenho medo de
concluir que não sei estender o amor para além do tempo das utilidades.
Uma coisa é certa. Não tenho muita tolerância com as pessoas
que me são próximas. São comuns, e não têm outros assuntos senão as urgências
de seus cotidianos tão cheios de rotina. Quero mais que isso.
Meu caro mestre, a vida anda difícil nestas paragens. Meu
coração inquieto anda apanhando mais que batendo. Tudo isso me leva a concluir
que Sartre tinha razão ao dizer que a vida é uma paixão inútil. O tempo tem
sido para mim uma experiência torturante. Existe uma morosidade em tudo o que
me rodeia. O meu desejo é que uma noite profunda se debruçasse hoje, sobre minha
vida, e que eu só acordasse dez anos mais tarde. O sofrimento transforma o
tempo. Eu o sinto estagnado, como se o relógio estivesse em descompasso,
trabalhando ao contrário. Estranho. A alegria apressa as horas. O sofrimento
paralisa.
Você que tanto conhece a respeito do tempo, pode a vida nos
envelhecer mais que o espaço demarcado na cronologia do calendário?
Responda-me, mestre, ou cale-se para envelhecer duvidando, da mesma forma que
eu duvido agora.
Com carinho,
Alfredo
Meu amigo,
Nossos encontros estão cada vez mais interessantes. Aos
poucos você vai abandonando o velho posto do estudante admirador. Vejo isso na
audácia de suas palavras. Não gosto de bajuladores. Prefiro as pessoas
atrevidas. Mas há sempre um risco. A razão é simples. O atrevimento pode nos
tornar adeptos da ignorância ou da sabedoria.
Espero que não se ofenda com essa minha ponta de ironia, mas
seu discurso é raso como as raízes das margaridas, e mesmo assim é belo. Mas no
raso de sua fala há uma raiz profunda, um broto teimoso que insiste em alcançar
os destinos mais profundos do chão da vida.
Já estou certo de que você tem um filósofo desencantado
abrigado no âmago de sua mente. Ele é arrogante porque tem consciência de ser
limitado. A arrogância é um recurso dos ignorantes. Quanto menos sabe, maior é
o desejo de agredir aquele que atenta contra o que ele não sabe, mas julga
saber. Mas na mesma casa onde se abriga o filósofo está também o poeta. E que
grande poeta mora em você! Sorte a sua! A salvação do filósofo depende da sobrevivência
do poeta. É ele que pode oferecer o equilíbrio de que você tanto necessita. O
filósofo que há em você insiste em viver de análises infecundas. Já o poeta,
este muito em breve aceitará plantar flores. Se o poeta prevalecer, é certo que
o filósofo arrogante dará lugar ao filósofo sábio, perspicaz, astuto,
equilibrado.
Alfredo, ando pensando que o discurso da falta ainda é a sua
melhor tradução. A prevalência do filósofo sobre o poeta gerou um grande
prejuízo à sua alma. Você não tem quase nada nessa vida, senão os sonhos para o
futuro. Mas e o presente? Como fazer se os sonhos futuros não oferecem
realização no agora da existência? Você tem experimentado a carência nas suas
radicais formas e expressões. Confessa não ter amigos. Não me assusto com isso.
Eu já previa ser assim. Também confessa não ter disposição para cultivar os
vínculos familiares. Você considera que pessoas comuns não tenham muito que lhe
oferecer. Mas Alfredo, o que você espera das pessoas? Um lugar para exercer sua
vaidade? O que você realmente deseja encontrar
no mundo em que está situado?
Não tenha pressa em responder, meu jovem amigo. Essas
perguntas merecem calma. As respostas que delas podem nascer são importantes
para sua qualificação humana.
Desculpe-me se estou sendo invasivo, mas acho que você tem
desperdiçado o seu tempo com egoísmos. Pelo que percebo, você vive numa eterna
contemplação narcísica, olhando i insistentemente para o lago que lhe reflete.
Com isso, perde a oportunidade de conhecer melhor o mundo que está ao seu redor,
e até se priva de reconhecer os limites que lhe são próprios.
A imagem que o lago nos mostra não é real, meu caro. Ou
porque nos torna melhores, ou porque nos torna piores do que somos. Ambas são
nocivas, pois nos retiram do centro de nossa verdade fundamental. O lago é o
lugar onde dilatamos as impressões que temos de nós mesmos. Cuidado. Essa visão
pode lhe causar prejuízos.
Alfredo, meu pequeno Alfredo, como eu gostaria de conhecer
essas pessoas que você despreza. Não sei, posso estar errado, mas eu intuo que
são elas que possuem a chave deste cofre tão lacrado que é o seu coração.
Querendo ou não, elas são as suas raízes. A elas você está ligado, são o seu
alicerce humano. Portanto, não perca tempo. Elas podem lhe oferecer o que você
tanto carece. Cotidiano rotineiro? Em qualquer lugar do mundo a vida é rotina,
meu querido. A rotina só muda de endereço. Não tenha medo de ser simples. Não
pense que uma boa conversa é só aquela que nos faz avançar no conhecimento
racional. E que o avanço para o conhecimento racional só é possível a partir de
livros, apostilas e conversas elaboradas.
Pessoas simples e sem muita instrução são tesouros de um
conhecimento prático que os livros não nos ensinam. São portadoras de
sentimentos e experiências muito preciosas. Pessoas são como livros, Alfredo.
Precisam ser lidas. Não pare nas capas. Há muita riqueza escondida em capas não
atraentes.
Fico me perguntando. Por que você procura tão longe aquilo
que parece estar colado à sola do seu calcanhar? Olhe para estes que você
considera inaptos para ser seus amigos! Saia do seu mundo. Volte a conversar
com seus irmãos, com seus vizinhos. Gente que lhe viu crescer. Quem sabe assim
você possa diminuir sua solidão. Resguarde o filósofo e dê liberdade ao poeta.
No encontro com estas pessoas simples, o filósofo talvez não se interesse, mas
o poeta, este sim terá interesse. A matéria-prima da poesia é a vida, Alfredo.
A vida simples, rotineira, cotidiana.
Desamarre as suas fardas. Não faça guerra o tempo todo. Há
momentos da vida que merecem simplicidade. Quem sabe assim você possa
descobrir, quando menos imaginar, quando menos tentar compreender, que a
amizade é um recurso que nos ajuda a suportar os nossos fardos.
Alfredo, perdoe-me, mas preciso lhe dizer. Você é semelhante
ao rio Amarelo. Sofre do mesmo mal: não têm afluentes. Você acaba antes de
chegar ao mar. Sem amigos não podemos ir muito longe. Há momentos em que nossas
águas não são suficientes para irmos adiante. Precisamos de outras mais
caudalosas. É aí que nos tornamos mais simples, menos complicados. No momento
em que careço, sou mais verdadeiro. Deixo cair as armas, desamarro as fardas,
porque todo soldado, por mais corajoso que seja ou possa parecer, sempre terá o
direito de chorar e de dizer que sente medo.
A quem você tem chorado a sua dor? A quem você tem confessado
os seus medos? A ninguém. Contou por alto ao seu professor o acontecido, e
agora me escreve cartas para falar sobre o que lhe aflige. Isso é pouco,
Alfredo. Você precisa retirar as armaduras. Chore. E que o seu choro não lhe
envergonhe, meu amigo. Mas não chore sozinho. Ainda que você ache que o outro
não terá inteligência para compreender suas razões, busque por ele. Chore sem
explicar. O choro já é uma palavra cheia de significados. O choro dispensa as
palavras. Há certos momentos em que um
colo aconchegante vale mais que mil frases inteligentes. O sofrimento é o
acontecimento humano que nos coloca todos numa mesma plataforma. Quando sofremos
e choramos somos todos iguais. Sábios e ignorantes, mestres e aprendizes, somos
iguais.
Chore no colo de sua mãe. Colo de mãe é sempre seguro.
Desaprenda de ser gente grande, ainda que por uns instantes. Volte a ser
pequeno, Alfredo. Não continue insistindo neste orgulho. Você está alimentando
sua solidão a pão de ló. Trata-a com requinte porque é vítima de sua própria
maldade. Clara tem razão de ter ido embora. Deve ser insuportável ficar ao lado
de quem não precisa de ninguém.
Alfredo, o bom da vida é a partilha das pequenas coisas.
Aprendi isso na minha casa, com minha família que foi o maior e melhor de todos
os livros que já li. Foi lá que eu aprendi a dividir o que tenho e o que sou.
Foi lá que eu aprendi a ser forte, mas também a ser frágil. A grande
responsável por isso foi minha mãe, uma mulher fabulosa que me ensinou muito
mais que todos os doutores que passaram pela minha vida.
Minha mãe nunca precisou de ajuda para descer a escadaria da
entrada de nossa casa. Sempre foi uma mulher forte e desenvolta. No entanto eu
nunca a vi recusar o braço de meu pai, que solícito e cavalheiro demonstrava o
seu amor naquele gesto de cordialidade.
Aprendi com eles que o amor é assim. Mesmo quando não
precisamos do outro, nós o permitimos chegar. E se por acaso, em algum momento
da vida, a gente realmente venha a necessitar daquele amparo, não será tão
difícil solicitá-lo.
O amor de que Clara necessitava era simples, meu caro
Alfredo. Um chocolate quente em tardes frias, uma conversa ao pé da escada, uma
confissão sincera de um sentimento puro, gratuito e que não tem nome. Um carinho
sem palavras, uma flor sem motivos.
Mas infelizmente você quis explicar o mundo a Clara através
dos livros. Que pena! Você desconsiderou que o elemento mais bonito da vida é o
mistério. É ele que alimenta os verdadeiros amores. Você achou que Clara fosse
um cadáver passível de ser dissecado. Quis investigar a sua alma tal qual o
filósofo investiga uma questão filosófica. Quis mensurar tudo como se a pobre
menina fosse um problema matemático.
Alfredo, Alfredo, nenhuma mulher gostaria de ser tratada
dessa forma. O que faz a paixão prevalecer é a preservação do mistério.
Conhecer alguém é antes de tudo respeitar o sacrário que deverá ser inviolável
durante toda a vida. Este respeito é que poderá fazer com que o amor seja
eterno. Ele é que trará a eterna sensação de novidade. Os amantes se movem
assim. Olham, mas não veem tudo. Precisam imaginar. E, enquanto imaginam,
experimentam a aventura de amar sem saber o que amam.
Quase uma atitude insana, não lhe parece? Eu sei que sim.
Ouso ainda dizer que o que lhe faz sofrer é o fato de não ter tido tempo de
dissecar tudo o que queria em Clara. Ela escapou de sua navalha afiada quando
você menos esperava. Fugiu do seu controle, rompeu as estruturas do cativeiro.
Sentiu que você perderia o seu encanto por ela, porque ela deveria intuir que
ninguém ama cadáveres dissecados, sem mistério. Por isso ela fugiu. Eu também
fugiria. E você?
Só mais uma coisa eu lhe peço. Não seja tão exigente com
aqueles que poderão ser seus amigos. Não é necessário ter cursado faculdade para
entender de dores. Basta ter sensibilidade humana.
Argus está aqui do meu lado. Dorme como se fosse uma criança
mimada. Não é humano, mas parece entender de dores também. Sempre que estou
triste, eu o percebo mais próximo. São os mistérios da amizade. Eu tenho muitos
amigos, mas neste momento quem me acompanha é ele. Tenho um cão amigo. Mas nem
isso você tem. Que pena!
Fico por aqui. Termino com mais uma pergunta. Já pensou em
abrir uma funerária?
Carinhosamente,
Abner
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