segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Terceiro dia)


DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO
CARTAS: QUINTA E SEXTA - 22.01.2018


Prezado Abner,

Cá estou eu nos desconfortos de minhas circunstâncias. Encontrar um sustento para o “ser” não tem sido fácil. Continuo amuado e sem motivação para reagir. Desculpe-me, mas não tenho disposição para esta simplicidade que sua carta sugere. Confesso que nem sei ao certo o que isso significa. Há alguns conceitos que considero apenas estéticos. Bonitos, mas não consigo compreendê-los nos desdobramentos do cotidiano.

A simplicidade é uma cidade que não conheço. Minha natureza sempre foi complexa. Eu só consigo experimentar os sabores do mundo quando o absorvo lentamente pelas vias da complexidade. Gosto mesmo é de investigar a reciprocidade das partes, o contexto que é fruto de articulações minuciosas e exigentes. Enxergar com simplicidade? Isso só é possível no discurso poético, nobre professor.

Quanto à sua pergunta, é claro que posso responder. Nunca ofereci flores à Clara. O motivo é um só: ela nunca demonstrou gostar de flores. Clara também se mostrou afeita às reflexões. Nosso amor era movido por metafísicas. O que é um ramalhete de flores perto de um cesto de palavras?

Eu percebia que Clara admirava muito o meu jeito de interpretar as questões fundamentais da existência. Gostava de me ouvir falar das vertentes filosóficas, das origens do pensamento, das epopeias e dos heróis. Sempre gostei muito de estudar a mitologia grega. Nossas conversas giravam em torno dessas questões. Eu lhe ensinava os segredos dos mitos, as sugestões que provocaram ao longo da história, e o ensinamento que resguardavam. Mergulhávamos juntos nos mistérios da hermenêutica.
Tudo ia maravilhosamente bem, quando de repente ela se foi. Corro atrás dos motivos, mas confesso que não posso encontrá-los. O que sei é que algo muito sério aconteceu com Clara. Ela não tinha motivos para me abandonar. Eu já tinha estabelecido as metas para nosso futuro. Clara ficaria ao meu lado. Desfrutaria comigo os louros de minhas conquistas.

E por falar em conquistas, prezado professor, sei que isto pode lhe parecer arrogante, mas confesso que tenho muita dificuldade para entender essa história de que há sempre uma vitória na derrota. Não há uma contradição fundamental nessa premissa? Os princípios de nossa tão admirada Filosofia não estão sendo desconsiderados ao afirmar a reconciliação desses contrários?

Perdoe-me, sei que estou sendo pretensioso em discordar de sua fala, mas não poderia omitir este meu posicionamento. Posso até reconhecer que suas palavras estão revestidas de beleza, mas nem sempre a beleza resguarda a verdade. Não posso concordar com isso. Não encontro coerência em seu discurso, meu caro professor. Sofrer não é vitória. Experimento isso na pele. Não me sinto no pódio por perder Clara, ao contrário, eu me sinto é na vergonha do último lugar.

Não há beleza na perda. A partida de Clara confirma o que afirmo. Depois que ela se foi, o meu mundo está reduzido. Minhas possibilidades estão escassas. O que antes era largo agora ficou estreito. O que antes era plural agora voltou a ser singular. Onde está a vitória em tudo isso?

Suas palavras são belas, mas não respondem. São instigantes, mas não representam solução para o meu desatino. Mesmo assim devo admitir que estou imensamente grato por se ocupar comigo. Imagino que seu tempo seja curto para tantas demandas de leituras. De qualquer modo, gostaria de pedir-lhe uma gentileza. Caso ainda esteja disposto a continuar a ouvir minhas lamúrias, poderia me responder uma última questão?

Onde está a glória do fracasso?

Com meu respeito e minha admiração,
Alfredo



Meu caro Alfredo,

Creio que sua carta tenha sido escrita em momento de profunda irritação. O rancor escorre pelos cantos de suas palavras. Escreveu com pressa? Não permitiu que as palavras demorassem em você? Creio que sim.

Mas não se preocupe. Eu também já fui vítima desses rompantes de juventude. Toda vez que alguém se opunha ao meu modo de ser e pensar, eu rapidamente armava minha defesa. Eu não era capaz de dormir sobre o desconforto da refutação. Achava que a reação deveria ser imediata. Estava sorvido pela doce ilusão de que é preciso ter sempre razão. Por isso errei tanto.

Você sabia que a ira nos cega para a sabedoria? E o pior, faz com que o nosso inimigo prevaleça. A raiva nos retira a capacidade de analisar as palavras que nos desafiam. Manter a calma pode nos ajudar a compreender melhor o porquê do desconforto. Recomendo-lhe que mergulhe um pouco nos escritos de Sêneca, o grande pensador. Ele fez reflexões muito interessantes a respeito da ira, mas isso não vem ao caso. Deixo Sêneca como lição de casa.

Meu caro Alfredo, não saber perder já é uma forma de perder sempre. E perder sempre é um jeito mesquinho de morrer antes do tempo. Quem não aprende a lidar com as perdas corre o risco de manter a vida estacionada. Multiplica os desafetos e despeja sobre o mundo todas as suas insatisfações.

Glória no fracasso? Existe, meu caro Alfredo. Mas é cedo para que você possa enxergar. Ainda lhe falta uma parte importante do processo. Você ainda não assumiu ter perdido. Seu orgulho não lhe permite. Sua incessante tentativa de encontrar explicações sobre os motivos de Clara ter partido funciona como esconderijo. Volto a dizer, o rei está nu. Só que ele insiste em imaginar-se vestido.

Alfredo, só pode enxergar a glória que há no fracasso aquele que enxergou o fracasso por ele mesmo. O maior medo, o mais vergonhoso de todos os medos é o medo de dizer que se tem medo. Camuflar a insegurança é alimentar a covardia. Não ter coragem de olhar para o próprio fracasso é ser duas vezes fracassado, meu caro.

Outra coisa. Clara ainda não foi embora. Por isso o sofrimento é tão agudo. Organizar o luto é muito importante para que o tempo inicie o processo da cura. Você não permitiu que ela partisse, pois insiste em aprisioná-la nos seus sonhos, nas suas esperanças. Clara está atada às suas costas. Você a transformou num fardo pesado e desajeitado. Por isso você tem tanta dificuldade em prosseguir o seu rumo.

Dessa forma você estende o tempo da dor. Você a transforma em agonia, pois retira dela o caráter redentor que lhe é próprio. Sofrer por sofrer? Não creio que seja uma opção inteligente. Você não pode insistir em aprisionar o que não é seu; reter o que não existe mais, o que já se foi, o que já morreu, o que já partiu. Assuma que Clara foi embora. Não distraia sua alma com tantas perguntas. Tranque essa porta de onde você insiste em contemplar a estrada vazia. Depois de morto, o corpo precisa ser sepultado. Mas não é somente a materialidade que precisa de sepulcro. Organizar o luto consiste em reconfigurar a vida a partir da ausência estabelecida.

Eu já vi muita gente perder o sentido da vida pelas mesmas razões. Pessoas que não admitiram sepultar os seus mortos. Não souberam reconfigurar os sonhos. Ficaram presas aos entulhos do passado e não permitiram que o presente soprasse vento de renovação sobre os destroços.

Por isso eu insisto. É importante saber perder, meu querido. A superação da perda só pode ter o seu início quando o perdedor reconhece a derrota.

Alfredo, admita que o florista está no pódio, e que você se arrasta para chegar até a linha de chegada, mas em último lugar. Comece a admitir isso para que a glória do fracasso não permaneça oculta aos seus olhos. Você é um perdedor. Essa é sua verdade. Seus banquetes filosóficos, seus poemas, seus heróis mitológicos não venceram a batalha. Os cestos de flores prevaleceram sobre os seus cestos de palavras.

Ó Alfredo, até quando insistirá em encontrar respostas para as perguntas que você ainda nem foi capaz de se fazer de fato? As perguntas que você me faz ainda são desconhecidas para você mesmo. São ocas. Não sabe o que quer perguntar e, mesmo assim, pergunta. Antes de desejar a resposta, investigue a sua pergunta, meu filho. Seja honesto com sua interrogação. Não perca tempo com as investigações sem propósito e, antes mesmo de querer o alento para sua dor, queira experimentá-la com profundidade. A dor é sua. Não é possível que ela seja tão infértil!

Quanto à contradição da minha premissa, eu a assumo. Sei que é contraditória na teoria, mas não o é na prática. Já observou que nem sempre a lógica do pensamento corresponde à lógica da existência? A vida é muito mais que a teoria que sobre ela estabelecemos. Ela não cabe nos nossos conceitos, mas nos escapa o tempo todo. Escorre pelos dedos, foge de nós. Por isso ficamos contraditórios.

Ontem mesmo descobri uma contradição instigante que faz parte de minha vida. Argus é um cão que amo muito. É um grande companheiro que tenho em casa. Argus não é um cão bravo que possa me servir como vigia. Também não possui pedigree para que possa ser exposto e premiado em concursos de cães. Argus não é bravo, nem belo. Cheguei à conclusão de que Argus é um inútil para mim. Não me serve para nada, e, no entanto, eu não consigo imaginar minha vida sem ele. Há coisas que nos são inúteis, mas mesmo assim nos são indispensáveis. Já pensou nisso?

Há sempre um perigo no amor que tem utilidade. Enquanto o outro exerce alguma função na nossa vida, corremos o risco de não experimentar o amor gratuito. Meu caro Alfredo, a utilidade pode parecer amor, mas não é. Amor que se fundamenta na utilidade que o outro tem corre o risco de se transformar em abandono num futuro próximo.

Quando queremos o outro só por causa da utilidade que tem para nós, agimos para satisfazer nossas necessidades. Amamos até o dia em que o outro nos é útil. No dia em que deixa de ser, mandamos embora, dispensamos. Esse é apenas um exemplo de uma contradição que só pode ser resolvida na prática da vida. É possível amar os inúteis? Na teoria não, mas na prática, sim.

Talvez você não esteja muito familiarizado com a linguagem das contradições, afinal você é fascinado pelas respostas. Você anseia ardentemente pelas explicações. Ouso lhe dizer que as contradições são sempre instigantes. Elas sugerem mais do que explicam. O contraditório é a vida pedindo socorro, é a existência clamando por ser interpretada. Mas essa interpretação não é um cânone de respostas prontas. Essa interpretação é feita a partir de respostas que geram novas perguntas. Por isso ela é processual. Ela perpassa por inúmeros caminhos e invade nossa vida inteira. O filósofo Henri Bergson refletiu com profundidade o vínculo que nos prende à vida. O ser humano precisa de um motivo para ir adiante. Ele chamou esse vínculo de “elã vital”, a força que nos move, que nos conduz e que traz um significado ao cotidiano que nos envolve. Minha relação com o mundo melhorou muito depois que descobri que as contradições fazem parte do meu elã vital.

Depois disso eu estou mais humano, mais paciente com minhas misérias, mais misericordioso com o mundo. Alfredo, por mais que tenhamos respostas prontas, o dilema da existência nunca terá fim. E não pode ter fim. O que nos move é justamente a sua dinâmica. O conflito é o pão nosso de cada dia. O contraditório é a experiência de toda hora, é o fruto de todo instante, é o companheiro que trazemos no bolso.

Clara deixou de clarear sua vida. O nome que até então enchia o seu coração agora está coberto de nuvens. Quanta escuridão resolveu morar neste nome! O que antes clareava agora escurece. Que contradição! Resolva-a, meu caro Alfredo. Ponha essa inteligência tão aguçada para funcionar. Reconcilie os seus contrários. Deixe que a partida de Clara lhe faça chegar a algum lugar dentro de você. Não tema a ausência de respostas. Há um encanto resguardado neste silêncio, acredite. Nem sempre a vida fala. Por vezes o que dela temos é o silêncio. Descanse um tempo maior neste seu não saber. Quem sabe assim o encaixe das peças venha a acontecer.
Mas enquanto não acontece, descubra alguma realidade que possa lhe servir de elã vital. Qualquer coisa que lhe ofereça vínculo com a vida. Algo que não lhe deixe esmorecer, que lhe empreste sentido, que reacenda o seu desejo de futuro.

Vou ficando por aqui, mas, antes de terminar, eu gostaria de fazer-lhe uma última pergunta. Você dedica amor a alguma realidade que lhe é inútil?

Ansioso por saber, despeço-me.

Abner




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