DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO 31.01.2018
CARTAS: VINTE E TRÊS e VINTE E QUATRO
Meu caro Abner,
Estou mais leve. Perder a responsabilidade de crer nas
respostas prontas torna-me mais tranquilo. Serei adepto da procura. Seguirei
crendo mesmo que eu não saiba expressar o que creio. A propósito, preciso
confessar-lhe que suas palavras me despertaram uma curiosa forma de enxergar a
fé de minha mãe.
Ela, na simplicidade de seus argumentos, não sabe dar
respostas às minhas perguntas, e mesmo assim ela segue crendo. Minha dúvida não
é nada perto de sua crença. Eu, sempre que interrogado sobre minhas convicções
acadêmicas, acabo por me conflitar com o que julgo saber. Essa é a natureza do
conhecimento. Ele é sempre relativo. É verdadeiro até que provem o contrário.
Meu conhecimento está fundamentado em inúmeras corroborações, tornando-o um
lugar seguro onde ancoro minhas convicções.
Mas com minha mãe não é assim. A sua fé não é relativa. Não
há nada que possa pôr em questão a confiança que ela professa em Deus. Ela crê,
mas não depende de provas científicas para crer. Crê porque vive no impulso de
uma fé existencial sem a qual ela não saberia definir-se no mundo. Ela é
cristã. Meu pai é budista. Ambos enxergam o mundo a partir das lentes que suas
religiões lhes oferecem. São pessoas que creem em formulações diferentes, mas
se encontram em muitos pontos. São pessoas de bem e lutam para que o mundo,
esse particular, esse que se traduz em necessitados concretos, seja beneficiado
pela sua bondade. Meu pai fala com muita eloquência sobre o que crê, mas minha
mãe não.
Outro dia eu lhe perguntei se havia provas concretas da
ressurreição de Jesus. Ela disse que não. E foi então que eu a desafiei dizendo
que seria absurdo ter fé num acontecimento que não pode ser provado
cientificamente. Ela me respondeu com simplicidade que se houvessem provas não
haveria necessidade de ter fé. Sua sabedoria retirou-me a coragem para uma nova
pergunta. Respostas inteligentes nos provocam para outras perguntas, mas
respostas sábias nos calam.
Querido Abner, ando navegando sobre as águas da sabedoria.
Ela tem remanso diferente do da inteligência. O rio dos intelectuais é mais
claro e sem muitas curvas. Já o rio dos sábios é turvo e sinuoso. Requer
habilidade para uma navegação segura. Eu vou aprendendo.
Meu jardim cresce, assim como crescem minhas alegrias. Já não
tenho o desconforto dilacerante das
primeiras cartas. Meu amor por Clara agora é leve, e por isso não me custa
levá-lo comigo. Ainda que não seja correspondido, esse amor faz parte de minhas
riquezas humanas. O desprezo que recebi de Clara não retira a nobreza do que
sinto por ela. Esse amor não me expõe fraco, tampouco me empobrece, ao
contrário, torna-me ainda mais feliz. Recordo-me de suas palavras desafiando-me
a olhar para o pódio onde o florista ostentava sua vitória sobre mim. Hoje não
me sinto envergonhado por isso. Paralelo ao pódio principal existe outro, não
concreto, e que só pode ser visto pelos olhos de quem sabe crer que no fracasso
há vitória. Nele eu ocupo o lugar mais alto. Sou muito mais homem depois de ter
sido derrotado, e essa visão eu devo a você.
Incorporei ao meu dia o hábito de ir buscar-me para que eu
não durma sem mim. Tenho chegado à conclusão de que meu jardim tem me devolvido
a mim mesmo. Estou ressuscitando em cada semente que brota, e para essa
ressurreição eu também, assim como minha mãe, não tenho provas concretas. Uma
coisa é certa. Minha mãe sabe que estou ressuscitando, e assim como ela dá
testemunho de Jesus, ela também dará este testemunho por mim.
Obrigado por ter gritado à porta de meu sepulcro. Obrigado
pela palavra que ordenou a minha ressurreição. Obrigado por ter ajudado a
retirar as minhas faixas. É com alegria que hoje ouso dizer, biblicamente: “O
que estava morto agora vive”.
Com amor de filho,
Alfredo
Meu caro amigo,
Suas palavras assombram-me com sabedoria e encanto. O
discurso simples, coerente e forte, levou-me a uma contemplação da beleza do
seu processo humano. Posso lhe garantir que o plantio do seu jardim já produziu
efeito terapêutico. A arte de sua Jardinagem já plantou flores dentro de você.
Ressurreição é o desafio de toda hora, meu caro Alfredo. O
movimento da vida requer o tempo todo o movimento da morte. Sementes que se
entregam ao processo de morrer, depois de alguns dias, amanhecem flores. Pode
haver beleza maior? Não sei se há.
O grande problema é que olhamos depressa demais para tudo
isso. Não sabemos demorar no que vemos. Olhamos, mas apenas esbarramos os olhos
no que vemos. É triste. Quanto milagre acontece ao nosso redor, mas nossa
pressa com a vida nos cega para esta percepção.
Quanto ao discurso dos sábios, você tem razão. Os sábios
possuem a terceira visão. Eles são capazes de se encantar com coisas menores
porque olham devagar para elas. Quando a pressa toma conta dos nossos olhos, o
encanto das realidades parece ficar velado. Tenho tido muita necessidade de
olhar devagar para as coisas, meu querido.
Já corri demais nessa vida. O tempo da pressa já se foi. E de
toda essa pressa muito pouco me sobrou. Mas não quero as sobras. Resolvi
recolher alegrias nos meus cestos imaginários. É melhor assim. Restos não me
realizam. Restos de dor, restos de amor, restos de felicidade. Não quero.
O que quero é a totalidade da vida escondida na miudeza de
cada instante, o meu empenho está em alimentar o elã vital que assegura a
qualidade da minha continuidade.
Creio que você soube viver bem o plantio de seu jardim. Ele
lhe ocupou o coração. Com isso, seu amor por Clara deixou de ser um peso. O seu
amor não mudou. O que mudou foi o seu jeito de olhar para ele. Antes, o olhar
cheio de pressa, a sensação de orgulho ferido, mas agora a calma tomou conta de
seus olhos. Da mesma forma que você foi capaz de olhar devagar para sua mãe. A
fé que você julgava tão ingênua agora você considera sabedoria.
Muita coisa mudou em você, não é mesmo, meu jovem jardineiro?
Isso me alegra. Toda vez que não resistimos ao movimento da vida, a sabedoria
vem se alojar em nós.
Sigamos assim. Movimentados e movimentadores. Neste ciclo tão
precioso, vamos tocando a morte e a ressurreição. Não há como parar. Sigamos
sempre.
Creio que muito em breve um raio de luz iluminará ainda mais
o seu jardim. Prepare o seu coração. Raios de luz merecem ser bem recebidos.
Com carinho,
Abner
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