DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO
CARTAS: SÉTIMA E OITAVA - 23.01.2018
Meu querido Abner,
Hoje o frio está me paralisando as mãos. Escrevo com a mesma
dificuldade com que respiro. O existir é pesado em mim, e minhas narinas
confirmam isso. Estou lutando contra um resfriado. Mas eu sei que é em vão.
Escutei desde criança que um resfriado quando bem cuidado dura uma semana, se
não cuidado dura oito dias.
Não quero responder agora à sua pergunta. Estou sem forças
para arquitetar qualquer argumento. Suas palavras estão enfeitiçadas. São
muitos os sortilégios alojados no último envelope.
Ao invés de uma resposta, envio nova pergunta. A fragilidade
do momento me permite essa proeza.
Veja bem. O resfriado que me abate é profundamente revelador.
Ele me mostra os limites de minha condição humana. Estou privado de muitas
coisas. Em outras palavras, o resfriado põe o meu corpo num estado de fracasso.
Então pergunto. Há alguma glória em ficar resfriado?
Pronto. Hoje não tenho disposição para muita conversa. Espero
que não se ofenda com a singeleza de minha pergunta.
Sua resposta será aguardada com ansiedade e dipirona.
Resfriadamente,
Alfredo
Meu caro Alfredo,
O inverno é estação proprietária de muita beleza. Mas o seu
frescor traz gripes fortes. É a vida nos mostrando, mais uma vez, que dela é
impossível extrair somente coisas boas.
Recorda-se das realidades contraditórias? Pois é. O inverno
tem suas belezas, mas elas não chegam
sozinhas. Quem quiser desfrutar os encantos da estação fria terá de suportar
também suas mazelas.
Ontem pude contemplar uma visão espetacular da minha janela.
Observei um joão-de-barro trabalhando na restauração de sua casa. Um laborioso
e detalhado trabalho. Uma paciência interessante de ser observada. Um exímio
construtor. Fiquei pensando: quem o
ensinou a construir assim?
Aquela cena me convocou a adentrar o significado da
simplicidade. O joão-de- barro não tem outra especialidade senão essa:
construir casas. Não dispersou forças em
outros investimentos, mas desenvolveu com naturalidade o seu principal talento.
Seguiu com simplicidade o seu destino. Não quis voar como as
águias, tampouco quis ciscar como as galinhas. Seguiu o seu instinto e
desenvolveu com simplicidade os atributos de seu ofício.
Ao ler sua carta, ou melhor, seu bilhete, eu fiquei
recordando que minha mãe dizia a mesma coisa que você. O resfriado é assim
mesmo. Cuidando ou não cuidando, durará o mesmo tempo. Um ou outro medicamento
pode até amenizar os sintomas, mas não cura a causa. A cura do resfriado vem
com o tempo. O corpo se encarrega de expulsar os vírus invasores, e, aos
poucos, os sintomas desagradáveis são aliviados, e o organismo se reconcilia
com o bem-estar.
Intuo que a vida afetiva sobreviva sob as mesmas regras.
Amores desfeitos são como os resfriados.
Num primeiro momento são agudos, doídos. Ficamos prostrados, indispostos. Mas é
só uma questão de paciência. Afetos também carecem de repouso. Precisamos
deixar que o movimento natural da vida venha inflar novos ares dentro de nós. O
tempo se empenha de ajeitar as coisas em seu lugar. Pode acreditar. Este
momento doloroso vai passar.
Alfredo, estamos em constantes êxodos. A vida passa e com ela
também passamos. As travessias são constantes. Por isso é tão importante que
estejamos atentos aos movimentos e mudanças. Para não haver o risco da estagnação.
Para não incorrermos no erro de deixar a vida passar sem que com ela a gente se
envolva.
Estou realmente convencido de que vive melhor aquele que
acolhe a novidade de cada dia. Aquele que não se prende à estação já findada,
mas dela recolhe o fruto ofertado e prossegue.
Alfredo, eu alimentei muita infelicidade ao tentar reter o
que da vida não poderia ser retido.
Infelicitei minha alma pesando-a com os cadáveres de meus apegos. Fechava as
portas do tempo presente, insistindo em acreditar que o melhor da vida já
estava soterrado. O apego ao passado é uma paralisia hedionda. Ele transforma o
ato de recordar em um instrumento destrutivo. O ser humano não é por acaso e a memória
é o depósito de toda a vida já vivida. É maravilhoso pensar que posso acessar meus
tempos idos através de um fio imaginário que aciono e que é capaz de refazer
minhas cenas mortas. Tantas pessoas cabem aqui dentro de mim! Estão alojadas em
algum canto da memória. Vez em quando saem aos bandos, gritando vozes antigas,
contando casos que me incluem, remontando cenários, devolvendo-me a existência
já existida, desvanecida, feito pó. São as minhas idades, todas elas, dispostas
como se fossem arquivos, e que podem me devolver sensações, como se a vida
estivesse dormecida, e que uma simples fala poderia acordá-la de seu sono.
Alfredo, recordar é tão bom. Ouso dizer que é um exercício
poético. Por meio da recordação, podemos ritualizar a existência, pondo num
mesmo altar todos os tempos, conjugando-os sem as amarras de suas
determinações.
Mas é por ser poético que também é perigoso. A recordação
pode se transformar numa risão. Nem tudo permanece. As perdas são inevitáveis,
você bem sabe. O apego ao passado pode nos privar das belezas do presente e das
esperanças do futuro. Eu vivo fazendo acordo com o tempo. Descobri que não
posso vencê-lo. Aprendi que o passado pode ser um quadro na parede, mas nunca a
mobília principal.
Meu querido amigo, abrir mão da vida que já não nos pertence
é um jeito sábio de perder para ganhar. Volto a dizer. Perdemos o tempo todo. E
perder requer arte. Os seres que éramos ontem, hoje já não os somos mais.
Estamos modificados. Alguma coisa em nós já começou a morrer. Mas outras
realidades já nasceram. Esta é a dinâmica do luto. Aquele que a cada dia se
sepulta da mesma forma renasce. Toda perda requer luto. Mas nem sempre
vivenciamos corretamente os movimentos deste luto. A morte do que somos
desordena tudo. Mexe, modifica, desinstala. Mas depois há sempre uma nova
oportunidade humana à nossa espera.
O mesmo acontece quando perdemos alguém. Enfrentar a morte
das pessoas que amamos não é fácil. Falo de todas as formas de perder. Há
pessoas que se vão denossas vidas, mesmo quando permanecem ao nosso lado. A
morte não foi física, mas afetiva. A morte física se impõe com uma
dramaticidade maior. O sepultamento do corpo é o desfecho da despedida.
Enterrar é necessário. É preciso que o velório termine, que o quarto seja
desarrumado e que as roupas sejam doadas, repartidas, para que a vida
reencontre seu curso normal. A tristeza faz parte do processo, mas será mais
leve à medida que o tempo cumpre o seu específico, que é passar. Tempo não foi
feito para ficar, ao contrário, foi feito para passar. E é bom que passe.
Nisso há uma dádiva. O tempo é redentor. Nele e com ele faremos
a experiência do distanciamento que nos ajuda a enxergar com mais leveza os
acontecimentos do passado. É por isso que o processo terapêutico consiste em
propor um retorno no tempo. Mas o tempo a que retornamos só existe no contexto
de nossas lembranças. A cena já se desfez, muitos personagens já morreram, mas
o resultado da cena ainda continua atuante dentro de nós. A isso chamamos de
trauma.
A terapia é uma tentativa de nos levar a um tempo que já não
nos pertence. Por meio da sugestão, nós retornamos ao lugar do passado e
acessamos o acontecimento que não nos fez bem. Voltamos à cena do trauma para
revivê-lo com os recursos de hoje. Com isso, há uma possibilidade de cessar o
poder do trauma porque, ao acessar o passado com os olhos de hoje, podemos
encarar o acontecimento que nos traumatizou de um jeito novo. O novo olhar nos
cura porque expulsa o medo que até então morou dentro de nós.
Eu sei que posso estar falando algumas bobagens. Mas o que é
o homem sem as bobagens em que acredita, meu prezado amigo? Falo tudo isso
porque estou afetado com sua perda. Vejo tudo isso com muita simplicidade. O
fato é que Clara se foi de sua vida. Na sala principal de sua existência, há um
velório que você não permite terminar. Sua tristeza não tem encontrado redenção
por um motivo muito simples. Você não iniciou o seu luto. Ainda permanece
relutante no lodo do abandono. O corpo estendido em sua lembrança não lhe
permite prosseguir.
Alfredo, eu tenho sentido que a morte começou a rondar a
minha vida. Percebo que não viverei muito tempo. Essa percepção me divide. Vejo
o seu lado assustador, mas também reconheço sua sedução. Acho confortável os
direitos que a proximidade da morte me lega. Morrer, finalizar, terminar são
verbos que me concedem o direito de perder a pressa, as urgências. A certeza de
que em breve já estarei de partida me faz dispensar o que na vida é acidental.
Não posso perder tempo com mesquinharias, tampouco negligenciar cada minuto que
ainda tenho.
Não é inegável que há um encanto em tudo isso? Logo que me
percebi velho, eu me senti no direito de abandonar a Universidade, as aulas, a
vida social, quis perder a pressa. Este é o recanto do meu sossego.
Precisei ficar velho e cansado para obter este privilégio. A
velhice traz benefícios. Limites também. Mais uma vez estamos tocando os
contrários.
Meu querido Alfredo, é preciso resgatar a beleza das
finalizações. Revestiram de tragédia a nossa derradeira partida. O materialismo
das sociedades está transformando a morte num ato definitivo. Os olhos só
enxergam a lápide, o destino final do corpo. Não gosto de pensar assim. Prefiro
a perspectiva da passagem. É bom passar. É bom fluir, seguir o remanso dos dias
que nos levam e a ele não resistir. Deixar que a vida cumpra o seu papel de me
fazer ser velho e de me dar, em partes, a sabedoria de que preciso para
interpretar o meu passado.
Aproveite o seu resfriado. Ele lhe recorda a finitude de sua
condição. Não se assuste com o que vou dizer. Ele é uma janela de onde você
pode ver como será o fim. Ficar doente é o mesmo que debruçar na janela de onde
podemos avistar a morte. Aproveite essa enfermidade para perceber a ação da
morte em seu corpo. É assim que ela agirá um dia, levando-lhe de si mesmo.
Olhe pelo lado bom. O mal-estar do corpo é um recado que nos
recorda a precariedade da matéria. O corpo padece e morre um pouco todo dia.
Mas no avesso dessa morte há um prêmio, um bilhete que lhe permite acesso a
lugares interessantes em nós mesmos. Este é o prêmio que tanto almejo
ultimamente.
Aproveite a debilidade do corpo e volte o olhar para sua
alma. Está na hora de sepultar o que restou de Clara. Organize este luto. Olhe
para sua perda de forma corajosa e determinante. Ocupe-se de sua dor de um
jeito novo. Sepultura aos que estão mortos, meu caro. Este é o primeiro passo
para que o processo do luto nos encaminhe para a cura.
Posso lhe dar uma sugestão? Por que você não aproveita o
próximo período de férias para se ocupar de uma atividade lúdica? Esqueça um
pouco os livros. Ocupe-se de uma realidade bastante simples, mas profundamente
inspiradora. Não quer plantar um jardim? Acho que lhe faria bem. Seria uma
oportunidade única de conhecer melhor as armas do seu inimigo.
Desejo-lhe melhoras.
Atenciosamente,
Abner
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