sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Sétimo dia)













 DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO
CARTAS: TREZE E CATORZE  26.01.2018

Meu caro Abner,

Você e suas finalizações irônicas. Não, não penso em abrir uma casa funerária. Também não sei lidar com os mortos. Teria de declarar falência em pouco tempo. Engraçadinho. Agora decida. A funerária ou o jardim? Ou quem sabe os dois. São atividades complementares, presumo.
Hoje estou abatido pelo cansaço. Corri algumas léguas com o desejo de recuperar a antiga disposição. Sua carta me fez rir e chorar. Não chorei acompanhado. Ainda não sei viver essa simplicidade. Existe pílula para essa virtude? Se houver, remeta-me uma quantia generosa.
Confesso que não sinto vontade de contestar nada do que você disse. Isso não significa que eu não tenha argumentos para uma boa e acirrada oposição às suas ideias. Tenho-os, mas o cansaço do corpo me impele a escrever coisas mais leves.
Preciso lhe contar algumas iniciativas. Hoje eu pude fazer um trajeto interessante. Corri da minha casa até o ponto alto da montanha que ladeia nossa cidade. Lá eu observei que há uma espécie de flor que já desafia as últimas rajadas de vento frio.
Pode parecer estranho, mas eu percebi que eram flores que pareciam se exibir, como se não fossem capazes de controlar a vaidade, entende? Fiquei rindo sozinho. Ali, naquele lugar onde o inverno ainda é ameaçador, as flores se aventuravam num risco existencial cheio de prepotência.
É absurdo, mas confesso que pensei uma barbaridade que agora ouso lhe perguntar. Podemos falar de personalidade vegetal? Há flores vaidosas, outras orgulhosas, e algumas que são humildes? Será que no meio de tanta diversidade podemos encontrar flores que se comportem como nós?
Ó meu caro Abner, quem sabe você pode me retirar deste impasse tão pueril.
Florido de curiosidade, despeço-me.
Alfredo


Alfredo, florido Alfredo,

A primavera está chegando em sua vida. Fico feliz por ter se ocupado das flores, ainda que seja para uma questão que considera pueril. Também me alegro por você ter posto o corpo para se exercitar. Uma boa atividade física repercute nos desempenhos da alma. Creio na  integralidade da saúde. Corpo e mente precisam de cuidados diários.
Quanto à questão que você me ofereceu, adianto-me em lhe dizer que ela é  interessantíssima. A natureza é cheia de regras. Há um estatuto que rege cada espécie. É interessante compreender esses estatutos como um fator que parece imprimir uma espécie de personalidade às plantas. Sei que estou dizendo um absurdo. Personalidade das plantas é estranhíssimo, mas não encontrei outro termo.
Vamos aos exemplos práticos. Olhe para os girassóis. Eles são submissos. Mas não há sofrimento nesta submissão. A sabedoria vegetal os conduz a uma forma de seguimento surpreendente. Fidelidade incondicional que os determina no mundo, mas sem escravizá-los.
 A lógica é simples. Não há conflito naquele que está no lugar certo, fazendo o que deveria. É regra da vida que não passa pela força do argumento, tampouco pelo aprendizado dos livros. É força natural que conduz o caule, ordenando e determinando que a flor realize o giro, toda vez que mudar a direção do Regente.
Estão mergulhados numa forma de saber milenar, regra que a criação fez questão de deixar na memória da espécie. Eles não podem sobreviver sem a força que os ilumina. Por isso, estão entregues aos intermitentes e místicos movimentos de procura. Eles giram e querem o Sol.
Agora vamos falar de vaidade. É claro que as flores são vaidosas. Elas parecem conhecer o poder estético de seus revestimentos. Creio na vaidade das flores, sim. Creio na inteligência vegetal que faz cada espécie ser como é. É um mundo fantástico a que não temos acesso. Por isso nossa linguagem é tão limitada. Dizer que sou consciente de meus limites e possibilidades é uma linguagem que posso aplicar tranquilamente. Sou humano. Sou capacitado de consciência. Mas não posso falar de consciência para me referir a um vegetal.
Mas, quando contemplo as margaridas floridas e tão cheias de viço, percebo que estão felizes por serem o que são. É nessa hora que eu me esqueço dos postulados da razão e de tudo o que a epistemologia me ensina sobre o mundo, para me aventurar nesta irresponsável forma de dizer. E então, sem medo de ser recriminado, digo: as margaridas são conscientes de que estão belas.
Mas fique tranquilo, eu não pretendo abrir um consultório para diagnosticar e medicar o conflito entre bromélias e margaridas. Já imaginou uma flor indo ao consultório tratar a vaidade excessiva? Minha loucura não chega a tanto.
Não pretendo abrir uma clínica psiquiátrica para o tratamento dos desequilíbrios e desajustes da vegetação. Não estou disposto a receber em meu consultório um girassol conflitado porque o Sol não reconhece o seu amor devotado. Seria demais para mim.
Prefiro observar os jardins e favorecer o que cada espécie necessita para chegar a ser o que pode ser. O bom jardineiro é aquele que respeita o estatuto da planta. Um exemplo simples. Eu não planto gérberas à sombra, pois sei que carecem de muita luz solar. Plantadas no lugar certo, elas florescerão com alegria.
Esta regra também vale para nós, humanos. Há sempre um lugar certo em que precisamos estar. O florescimento da vida humana depende do respeito ao estatuto que temos dentro de nós.
Volto aos girassóis. A partir deles eu me ponho a pensar no meu destino de ser humano. Penso no quanto eu também sou necessitado de me voltar para uma força regente, absoluta,  determinante.
Levei tempo para ter coragem de dizer o que agora lhe direi. Eu preciso de Deus. Se para Ele não me volto, corro o risco de me desprender de minha possibilidade de ser feliz. É Nele que meu sentido está todo contido. Ele é guardião de todas as minhas possibilidades ontológicas. Tudo o que eu ainda posso ser, Nele está escondido. Descubro maravilhado. Mas no finito que me envolve, posso descobrir o desafio de antecipar no tempo, o que Nele já está realizado.
Então intuo. Deus me dá aos poucos, em partes, dia a dia, em fragmentos. Eu Dele me recebo, assim como o girassol se recebe do Sol, porque não pode sobreviver sem sua luz. A flor  condensa, ainda que de forma limitada, porque é criatura, o todo de sua natureza que o sol potencializa. O mesmo é comigo. O mesmo é com você. Deus é nosso sol, e nós não oderíamos chegar a ser quem somos, em essência, se Nele não pusermos a direção dos nossos olhos.
Cada vez que o nosso olhar se desvia de sua regência, incorremos no risco de fazer ser o nosso Sol o que na verdade não passa de luz artificial. Substituição desastrosa que chamamos de idolatria. Uma força finita colocada no lugar de Deus.
A vida é o lugar da Revelação divina. É na força da história que descobrimos os rastros do Sagrado. Não há nenhum problema em descobrir nas realidades humanas algumas escadarias que possam nos ajudar a chegar ao céu. Mas não podemos pensar que a escadaria é o lugar definitivo de nossa busca. Parar os nossos olhos no humano que nos fala sobre Deus é o mesmo que nos privar do direito à transcendência.
Tudo o que é humano é frágil, temporário, limitado. Não é ele que pode nos salvar. Ele é apenas um condutor. É depois dele que podemos encontrar o que verdadeiramente importa. Ele, o fundamento de tudo o que nos faz ser o que somos. Ele, o Criador e pai de toda a realidade criada.
Alfredo, nós somos como os girassóis. Estamos todos num mesmo campo. Há em cada um de nós uma essência que nos orienta para o verdadeiro lugar a que precisamos chegar, mas nem sempre realizamos o movimento da procura pela luz.
Por isso é tão importante que sejamos afeitos a este movimento místico, natural. Não podemos prender os olhos no oposto de sua presença. Não podemos querer o engano dos artifícios que insistem em distrair a nossa percepção. Não podemos substituir o essencial pelo acidental, afinal, é a nossa realização que está em jogo.
Girassol só pode ser feliz se para o Sol estiver orientado. É por isso que eles não perdem tempo com as sombras. Eles já sabem, mas nós precisamos aprender.
Meu querido filho, não tenha medo deste aprendizado. Disponha o seu coração para a busca deste Sol. Tenho certeza de que você tem uma indisposição para esta forma de discurso. Pelo que percebo, você pertence a essa classe intelectual que resolveu retirar Deus da história. Compreende que crer em Deus não é razoável. Que a fé é um argumento de segunda grandeza. Eu também já integrei este grupo, mas hoje não penso mais assim.
A crença no Sagrado exige muita grandeza humana. Crer em Deus é muito mais sofisticado que não crer. A crença em Deus requer sensibilidade, ao passo que o ateísmo não exige muito esforço.
Mas não quero me estender, nem ficar lhe desagradando demais. Volto a dizer que fiquei satisfeito em saber que você se exercitou para cansar o corpo. Num corpo cansado, a sensibilidade tem mais chances. Já observou isso?
Antes que eu me esqueça. Trouxe mudas das montanhas? Se não trouxe, volte para buscar. Mas só leve o poeta. Deixe o filósofo descansando em casa. Quando começará o preparo do solo? Quando ficará pronto o seu jardim? O retorno de Clara depende deste plantio.
Florido de esperanças, despeço-me.
Com carinho,
Abner

P.S.: Há uma planta que parece possuir a mesma personalidade que você. Comigo-ninguém-pode. Conhece?

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