quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Décimo quarto dia)















DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO  0202.2018
CARTAS: VINTE E SETE E VINTE E OITO


Abner,

Obrigado pelo carinho. Gostei muito de sua expressão “curado de ser gente grande!”. Você tem razão. Por vezes o mundo adulto é uma espécie de doença. Observei que minhas  inaptidões com a simplicidade da vida estavam intimamente ligadas ao meu desejo de ser maduro.
Mas o que é amadurecer? Não seria encontrar o ponto de equilíbrio que nos faz provar grandeza e simplicidade com a mesma disposição? Maturidade não seria a síntese entre inteligência e sabedoria? Pode ser que seja. Levo comigo essa convicção. A sabedoria é atributo dos simples, dos que reconhecem que é preciso encolher para realizar a passagem que nos permite adentrar o território das grandes questões humanas
Acho que estou no caminho certo. Tenho procurado me encolher para aprender, e isso eu devo a você. Construir um jardim, descobrir o mistério que se esconde no ato de semear a terra, de esperar pelo tempo de cada planta, foi um aprendizado maravilhoso.
O cultivo desta simplicidade me curou de ser grande. Ando mais calmo, sem as ansiedades de antes. Continuo minha busca pelo conhecimento, mas esta busca está modificada. Eu quero aprender, mas não quero provar nada. Quero ser simples diante do que aprendo. Assim eu posso aprender dobrado. Aprendo para não esquecer.
Hoje pela manhã, eu esparramei pelo jardim algumas frases de poetas que aprendi a amar. Pintei em pedaços de madeiras. Ficaram bonitas. Palavras combinam com flores. Elas sofrem o mesmo processo que as sementes. Elas carecem de tempo dentro de nós para que floresçam bonitas.
O tempo da semente é também o tempo da palavra. Foi com você que aprendi. Palavras que são frutos da pressa correm o risco de cair no esquecimento. Frases que marcam são as que certamente foram cultivadas no silêncio de uma vida cheia de desafios.
Eu tinha muita ansiedade de escrever um livro, mas tenho pensado muito que o meu tempo de escrita ainda não chegou. Este é o tempo de preparar os livros dentro de mim. É o tempo da vida, do aprendizado. Depois eu os escreverei. Antes do livro, a vida.
Muitos livros estão escritos dentro de mim, mas agora eu preciso interpretá-los, e só assim serei capaz de encontrar as palavras que possam dar voz a estas experiências.
Fiquei pensando muito na minha história com Clara. Já pensou que romance lindo poderia ser escrito? O filósofo que perdeu o amor de sua vida para um florista.
Meu amigo, esta história certamente será muito sugestiva. Terei muito o que dizer. Vou esperar que as palavras amadureçam dentro de mim.
E por falar em obra, aproveito o ensejo para dispensar-lhe do desconforto de enviar-me os manuscritos de seu novo livro. Deixarei para lê-los em outro momento.
Mais uma vez, obrigado pelo seu carinho. Fico por aqui, neste tempo de primavera, nestes dias em que as flores são poemas que meus olhos leem com prazer.
Despeço-me cheio de alegrias miúdas, mas constantes.
Com carinho especial,

Alfredo


Meu querido Alfredo,

Que bom que você tenha esparramado poesia em sua morada. Estes fragmentos de poemas tornarão ainda mais interessante o ambiente florido que você construiu.
A palavra poética é salvífica. Experimento em minha alma o poder curativo que  há nessa forma de linguagem. Para algumas enfermidades, não há remédio melhor. Para os tristes e abatidos, há uma receita infalível. Um poema de hora em hora.
Alfredo, não foi à toa que Deus criou o mundo a partir da força de seu verbo. A palavra nos recria, ela nos recomeça, ela nos ressuscita.
A ressurreição de Lázaro teve início na palavra de Jesus. Foi o grito de Deus que penetrou nos ouvidos mortos daquele homem e que o fez retornar à vida.
Temos falado muito de ressurreição. Ressurreição é palavra sugestiva. A vida só é viva se estiver no movimento silencioso que a faz ressurgir constantemente. Ressurreição é processual. Águas que morrem, evaporam, chuvas que nascem. Rios que se conduzem em mixórdia constante, afluindo, deixando de ser sozinhos para serem na comunhão.
Misturar é ressurgir. É garantir a chegada final, que no ato de chegar já se transforma em nova partida. Viver é morrer todo dia. O que eu era antes já não sou agora; mas sou o que ainda não fui.
O movimento é de vida e morte. Realizamos constantemente os dois movimentos da  existência: o primeiro e o último. Inspiração e expiração. Tudo ao mesmo tempo, provando-nos que morrer é viver; viver é morrer. Instigante, miraculoso.
A crença na ressurreição de Jesus movimenta a liturgia cristã. Tudo o que o sacramento realiza está diretamente ligado à vida nova que o Cristo oferece ao mundo. É no Cristo que a vida humana é transformada. O ciclo não para. Ele perpassa toda a história concedendo salvação aos que o aceitam.
O movimento místico dessa ação salvífica nos ensina a compreender que Ele está no meio de nós!
Esta frase constantemente ouvida nos relatos das primeiras comunidades cristãs, e ainda repetida nos dias de hoje nas liturgias, está diretamente ligada à fé na ressurreição.
O amado não se foi, mas continua presente na criatura amada. O sepulcro está vazio. O ressurreto está fora do tempo, mas passa pelo nosso tempo para nos santificar.
Alfredo, o amor é um recurso humano que nos antecipa o que é eterno. Eu bem sei disso. Experimento a ressurreição de Flora a cada dia. Incontestável, assim como é a matemática de Pitágoras e seu teorema. Flora está por toda parte de minha vida. É dogma de fé, meu caro amigo.
Após o sepultamento de Flora, decidi que iria me desfazer de todos os seus  pertences. Mas algumas coisas eu quis guardar. Um bilhete que ela me escreveu por ocasião de uma viagem, algumas fotografias, e o livro que marcou o dia do nosso encontro.
Tudo o que dela não pude esquecer eu sepulto nos meus jardins para que ressurja de outra forma. Reter é a pior forma de perder. Não quero ser vitimado pela ilusão de possuir o que já não me pertence mais. Essa atitude foi muito importante para que eu me libertasse do peso que a morte de Flora me impôs.
Engraçado, mas esta atitude foi ela quem me ensinou durante o tempo em que viveu ao meu lado. Flora insistia comigo que era preciso me libertar de meus apegos. Foi com ela que eu aprendi que amar é atitude constante de libertação da liberdade.
Alfredo, nem sempre temos consciência de nossas prisões afetivas. Encarcerados temos a sensação de liberdade. Precisamos de alguém que nos ame para nos mostrar essa cilada. Só o amor nos faz ver estes avessos. Eu pensava ser livre. Procurava constantemente por uma filosofia que me favorecesse ainda mais essa liberdade. Foi então que o amor de Flora transformou verdadeiramente a minha vida.
Os anos ao seu lado me fizeram descobrir que minha estranha liberdade acorrentava-me a inúmeras posses. Minha casa, meu carro, meus livros, meu conhecimento, meu emprego, meus diplomas, meu prestígio. De tudo eu era escravo. Estava amarrado, como um cão. Corrente curta que não me permitia ir muito longe. Eu havia me transformado em um vigilante de meus bens.
Alguns anos antes de morrer, Flora teve coragem de me dizer isso. Disse-me sorrindo, tão cheia de ternura. A frase doeu, mas foi redentora. Dor que dói para redimir é dor que vale a pena!
Flora desafiou-me a viver mais desprendido. Especialista em Biologia, ela tornou-se uma amante da arte da Jardinagem. Estudou Paisagismo e durante muito tempo insistiu comigo para que eu também me interessasse pelos jardins.
Eu gostava de ouvir a maneira apaixonada com que falava sobre o assunto, mas eu vivia ocupado demais com a Filosofia. Com ela eu aprendi muita coisa. Ela me falava sempre sobre a gratuidade que há nos jardins. Ensinou-me que as flores não querem outra coisa senão ser o que são. Sem cercas, ainda que alguém venha roubá-las de suas raízes. Serão gratas até o último viço. Elas são livres. Estão sempre prontas para partir.
Eu quis aprender com Flora, meu querido amigo. O discurso que a princípio parecia tão cheio de ingenuidade começou a tomar conta de mim. A sua doença a matou rapidamente. Não tive muito tempo. Ainda na antiga residência, ela me apresentou os projetos que gostaria que fossem executados aqui. Flora me pediu jardins diversificados. Disse-me que cada um deles iria me render um aprendizado diferente, mas todos costurados num único objetivo: devolverem-me o ânimo.
E foi assim que os jardins sugeridos por Flora mudaram minha vida. Ela foi muito sábia. Logo após sua morte, deixei a antiga residência, cumprindo o pedido que Flora havia feito. Logo que cheguei aqui, iniciei os projetos que ela deixou preparados.
A casa onde morávamos foi transformada numa clínica que trata de crianças que sofrem de câncer. Tenho notícias de que os jardins que Flora por lá plantou continuam belos e preservados.
Alfredo, Flora me ensinou a perder. Desde que ela se foi, minhas perspectivas foram modificadas. Meu objetivo na vida não é mais ganhar, mas perder. Estranho?
Eu sei. Mas esta é minha verdade. Entrei no movimento do tempo. A cada dia tenho menos tempo para ser quem sou. A vida está se despedindo de mim. Mas não há sofrimento nessa perda. Em tudo isso eu vejo um ganho. O tempo diminui, mas a intensidade com que vivo pode ser redobrada. Menos um dia? Não tem problema. Reforço a intensidade. Assim eu vou ganhando com as perdas. Vou colocando mais vida na minha vida.
Alfredo, eu decidi que quero ser leve. Por dentro e por fora. Olho para tudo o que está ao meu redor, mas olho com liberdade. Posso ir embora a qualquer momento.
Perdi a ilusão da posse. Nada é meu. Sou apenas administrador do espaço em que me situo. Administro o sopro que está em mim, mas sei que a qualquer momento este sopro pode ser finalizado.
Mas enquanto o sopro não termina, vou vivendo feliz. Há tantas harmonias que merecem ser contempladas! Falta tempo para tanta beleza.
Fique em paz, meu amigo.
E que floresça sempre mais o seu jardim.
Com carinho,
Abner


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