DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO 0202.2018
CARTAS: VINTE E SETE E VINTE E OITO
Abner,
Obrigado pelo carinho. Gostei muito de sua expressão “curado
de ser gente grande!”. Você tem razão. Por vezes o mundo adulto é uma espécie
de doença. Observei que minhas inaptidões
com a simplicidade da vida estavam intimamente ligadas ao meu desejo de ser
maduro.
Mas o que é amadurecer? Não seria encontrar o ponto de
equilíbrio que nos faz provar grandeza e simplicidade com a mesma disposição?
Maturidade não seria a síntese entre inteligência e sabedoria? Pode ser que
seja. Levo comigo essa convicção. A sabedoria é atributo dos simples, dos que
reconhecem que é preciso encolher para realizar a passagem que nos permite
adentrar o território das grandes questões humanas
Acho que estou no caminho certo. Tenho procurado me encolher
para aprender, e isso eu devo a você. Construir um jardim, descobrir o mistério
que se esconde no ato de semear a terra, de esperar pelo tempo de cada planta,
foi um aprendizado maravilhoso.
O cultivo desta simplicidade me curou de ser grande. Ando
mais calmo, sem as ansiedades de antes. Continuo minha busca pelo conhecimento,
mas esta busca está modificada. Eu quero aprender, mas não quero provar nada.
Quero ser simples diante do que aprendo. Assim eu posso aprender dobrado.
Aprendo para não esquecer.
Hoje pela manhã, eu esparramei pelo jardim algumas frases de
poetas que aprendi a amar. Pintei em pedaços de madeiras. Ficaram bonitas.
Palavras combinam com flores. Elas sofrem o mesmo processo que as sementes.
Elas carecem de tempo dentro de nós para que floresçam bonitas.
O tempo da semente é também o tempo da palavra. Foi com você
que aprendi. Palavras que são frutos da pressa correm o risco de cair no
esquecimento. Frases que marcam são as que certamente foram cultivadas no
silêncio de uma vida cheia de desafios.
Eu tinha muita ansiedade de escrever um livro, mas tenho
pensado muito que o meu tempo de escrita ainda não chegou. Este é o tempo de
preparar os livros dentro de mim. É o tempo da vida, do aprendizado. Depois eu
os escreverei. Antes do livro, a vida.
Muitos livros estão escritos dentro de mim, mas agora eu
preciso interpretá-los, e só assim serei capaz de encontrar as palavras que
possam dar voz a estas experiências.
Fiquei pensando muito na minha história com Clara. Já pensou
que romance lindo poderia ser escrito? O filósofo que perdeu o amor de sua vida
para um florista.
Meu amigo, esta história certamente será muito sugestiva.
Terei muito o que dizer. Vou esperar que as palavras amadureçam dentro de mim.
E por falar em obra, aproveito o ensejo para dispensar-lhe do
desconforto de enviar-me os manuscritos de seu novo livro. Deixarei para lê-los
em outro momento.
Mais uma vez, obrigado pelo seu carinho. Fico por aqui, neste
tempo de primavera, nestes dias em que as flores são poemas que meus olhos leem
com prazer.
Despeço-me cheio de alegrias miúdas, mas constantes.
Com carinho especial,
Alfredo
Meu querido Alfredo,
Que bom que você tenha esparramado poesia em sua morada.
Estes fragmentos de poemas tornarão ainda mais interessante o ambiente florido
que você construiu.
A palavra poética é salvífica. Experimento em minha alma o
poder curativo que há nessa forma de
linguagem. Para algumas enfermidades, não há remédio melhor. Para os tristes e
abatidos, há uma receita infalível. Um poema de hora em hora.
Alfredo, não foi à toa que Deus criou o mundo a partir da
força de seu verbo. A palavra nos recria, ela nos recomeça, ela nos ressuscita.
A ressurreição de Lázaro teve início na palavra de Jesus. Foi
o grito de Deus que penetrou nos ouvidos mortos daquele homem e que o fez
retornar à vida.
Temos falado muito de ressurreição. Ressurreição é palavra
sugestiva. A vida só é viva se estiver no movimento silencioso que a faz
ressurgir constantemente. Ressurreição é processual. Águas que morrem,
evaporam, chuvas que nascem. Rios que se conduzem em mixórdia constante,
afluindo, deixando de ser sozinhos para serem na comunhão.
Misturar é ressurgir. É garantir a chegada final, que no ato
de chegar já se transforma em nova partida. Viver é morrer todo dia. O que eu
era antes já não sou agora; mas sou o que ainda não fui.
O movimento é de vida e morte. Realizamos constantemente os
dois movimentos da existência: o
primeiro e o último. Inspiração e expiração. Tudo ao mesmo tempo, provando-nos
que morrer é viver; viver é morrer. Instigante, miraculoso.
A crença na ressurreição de Jesus movimenta a liturgia
cristã. Tudo o que o sacramento realiza está diretamente ligado à vida nova que
o Cristo oferece ao mundo. É no Cristo que a vida humana é transformada. O
ciclo não para. Ele perpassa toda a história concedendo salvação aos que o
aceitam.
O movimento místico dessa ação salvífica nos ensina a
compreender que Ele está no meio de nós!
Esta frase constantemente ouvida nos relatos das primeiras
comunidades cristãs, e ainda repetida nos dias de hoje nas liturgias, está diretamente
ligada à fé na ressurreição.
O amado não se foi, mas continua presente na criatura amada.
O sepulcro está vazio. O ressurreto está fora do tempo, mas passa pelo nosso
tempo para nos santificar.
Alfredo, o amor é um recurso humano que nos antecipa o que é
eterno. Eu bem sei disso. Experimento a ressurreição de Flora a cada dia.
Incontestável, assim como é a matemática de Pitágoras e seu teorema. Flora está
por toda parte de minha vida. É dogma de fé, meu caro amigo.
Após o sepultamento de Flora, decidi que iria me desfazer de
todos os seus pertences. Mas algumas
coisas eu quis guardar. Um bilhete que ela me escreveu por ocasião de uma
viagem, algumas fotografias, e o livro que marcou o dia do nosso encontro.
Tudo o que dela não pude esquecer eu sepulto nos meus jardins
para que ressurja de outra forma. Reter é a pior forma de perder. Não quero ser
vitimado pela ilusão de possuir o que já não me pertence mais. Essa atitude foi
muito importante para que eu me libertasse do peso que a morte de Flora me
impôs.
Engraçado, mas esta atitude foi ela quem me ensinou durante o
tempo em que viveu ao meu lado. Flora insistia comigo que era preciso me
libertar de meus apegos. Foi com ela que eu aprendi que amar é atitude
constante de libertação da liberdade.
Alfredo, nem sempre temos consciência de nossas prisões
afetivas. Encarcerados temos a sensação de liberdade. Precisamos de alguém que
nos ame para nos mostrar essa cilada. Só o amor nos faz ver estes avessos. Eu
pensava ser livre. Procurava constantemente por uma filosofia que me
favorecesse ainda mais essa liberdade. Foi então que o amor de Flora
transformou verdadeiramente a minha vida.
Os anos ao seu lado me fizeram descobrir que minha estranha
liberdade acorrentava-me a inúmeras posses. Minha casa, meu carro, meus livros,
meu conhecimento, meu emprego, meus diplomas, meu prestígio. De tudo eu era escravo.
Estava amarrado, como um cão. Corrente curta que não me permitia ir muito
longe. Eu havia me transformado em um vigilante de meus bens.
Alguns anos antes de morrer, Flora teve coragem de me dizer
isso. Disse-me sorrindo, tão cheia de ternura. A frase doeu, mas foi redentora.
Dor que dói para redimir é dor que vale a pena!
Flora desafiou-me a viver mais desprendido. Especialista em
Biologia, ela tornou-se uma amante da arte da Jardinagem. Estudou Paisagismo e
durante muito tempo insistiu comigo para que eu também me interessasse pelos
jardins.
Eu gostava de ouvir a maneira apaixonada com que falava sobre
o assunto, mas eu vivia ocupado demais com a Filosofia. Com ela eu aprendi
muita coisa. Ela me falava sempre sobre a gratuidade que há nos jardins.
Ensinou-me que as flores não querem outra coisa senão ser o que são. Sem
cercas, ainda que alguém venha roubá-las de suas raízes. Serão gratas até o
último viço. Elas são livres. Estão sempre prontas para partir.
Eu quis aprender com Flora, meu querido amigo. O discurso que
a princípio parecia tão cheio de ingenuidade começou a tomar conta de mim. A
sua doença a matou rapidamente. Não tive muito tempo. Ainda na antiga
residência, ela me apresentou os projetos que gostaria que fossem executados
aqui. Flora me pediu jardins diversificados. Disse-me que cada um deles iria me
render um aprendizado diferente, mas todos costurados num único objetivo:
devolverem-me o ânimo.
E foi assim que os jardins sugeridos por Flora mudaram minha
vida. Ela foi muito sábia. Logo após sua morte, deixei a antiga residência,
cumprindo o pedido que Flora havia feito. Logo que cheguei aqui, iniciei os
projetos que ela deixou preparados.
A casa onde morávamos foi transformada numa clínica que trata
de crianças que sofrem de câncer. Tenho notícias de que os jardins que Flora
por lá plantou continuam belos e preservados.
Alfredo, Flora me ensinou a perder. Desde que ela se foi,
minhas perspectivas foram modificadas. Meu objetivo na vida não é mais ganhar,
mas perder. Estranho?
Eu sei. Mas esta é minha verdade. Entrei no movimento do
tempo. A cada dia tenho menos tempo para ser quem sou. A vida está se
despedindo de mim. Mas não há sofrimento nessa perda. Em tudo isso eu vejo um
ganho. O tempo diminui, mas a intensidade com que vivo pode ser redobrada.
Menos um dia? Não tem problema. Reforço a intensidade. Assim eu vou ganhando
com as perdas. Vou colocando mais vida na minha vida.
Alfredo, eu decidi que quero ser leve. Por dentro e por fora.
Olho para tudo o que está ao meu redor, mas olho com liberdade. Posso ir embora
a qualquer momento.
Perdi a ilusão da posse. Nada é meu. Sou apenas administrador
do espaço em que me situo. Administro o sopro que está em mim, mas sei que a
qualquer momento este sopro pode ser finalizado.
Mas enquanto o sopro não termina, vou vivendo feliz. Há
tantas harmonias que merecem ser contempladas! Falta tempo para tanta beleza.
Fique em paz, meu amigo.
E que floresça sempre mais o seu jardim.
Com carinho,
Abner
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