segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Décimo dia)


DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO  29.01.2018
CARTAS: DEZENOVE E VINTE


Abner,

Instigante o seu jeito de interpretar o ódio. Vê-lo como arma apontada para minha cabeça foi uma forma de identificar o meu suicídio lento e constante. Você tem razão. O ódio mata só a quem o sente. Ele vem no silêncio da noite e também no barulho da tarde.
Chega quando menos imagino. Quando desço um lance de escadas e chuto com descuido a quina da porta, ou quando levo um pedaço de biscoito com creme de amendoim à boca numa manhã fria de inverno. Biscoitos de amendoim eram os favoritos de Clara.
Eu cheguei à conclusão de que também odeio o florista que a levou de mim. O problema é que não sei nada sobre ele. Nunca vi o seu rosto, nem sei o seu nome. Ódio sem rosto é ainda mais dilacerante. Ele corre dentro de mim e não encontra a definição de que preciso. Ele não se  localiza. Sofro dobrado por não saber o que sofro. Quero que este mar em fúria se acalme. Já estou decidido. Resolvi me reconciliar com meu coração. Quero que ele seja meu aliado. As sementes me ajudarão nisso.
Já se passaram duas semanas desde que nos falamos por meio da última carta. O solo já está bem preparado. O tempo já é propício para o plantio. O clima ameno me encoraja um pouco mais. Selecionei as sementes e já preparei as sementeiras. Li a respeito do assunto e estou me sentindo um mestre nessa primeira parte do processo. Semeei de tudo. Quero ter o que escolher. Procurei tonalidades diversas e observei sua sugestão da cerca viva e as flores miúdas ao centro. Às vezes eu paro diante do terreno ainda limpo e fico imaginando os matizes que ficarão bem.
Minha casa tem uma fachada nobre. O jardim ficará ainda mais belo. Ou será o contrário? Onde está a beleza primeira? Na casa ou no jardim? Desculpe-me, mas não sei viver sem perguntar.
Pronto. Era isso. Fiquei imensamente honrado por ser reconhecido como um filho.
Abraço carinhoso de seu amigo, ou de seu filho, não sei...

Alfredo, o semeador



Meu filho Alfredo,

Obrigado por ter aceitado o meu amor paternal. Fico ainda mais comprometido com o itinerário de seu florescimento humano.
A questão a respeito da beleza é instigante. O que realça o quê? A casa realça o jardim ou é o jardim que realça a casa? É simples. É só imaginar um sem o outro. Acho que o jardim acaba tendo a primazia, mas não podemos negar que ele será mais belo quando estiver situado estrategicamente diante de outra beleza.
Assim poderíamos dizer que a natureza da beleza é sempre complementar. Uma beleza vai puxando a outra. A construção harmônica de sua casa certamente favorecerá a beleza do seu jardim, mas ele tem o seu encanto próprio. O inegável é que se estabelecerá entre eles uma íntima comunhão. Serão bonitos juntos. Os significados estarão entrelaçados definitivamente. E assim serão chamados: a casa daquele jardim e o jardim daquela casa.
Isso me faz recordar um casal de amigos canadenses que vivia por aqui, na década de setenta. Eles eram bonitos. Ele era alto, forte e tinha um sorriso constante nos lábios. Ela era esguia, possuía corpo bem torneado e olhos verdes de intensidade rara.
Eu sempre os via juntos, até o dia em que ele precisou, por motivos profissionais, passar uma temporada no Canadá. Eu a encontrei nos corredores da Universidade. Ela me chamou pelo nome, mas eu não a reconheci. Olhei bem e quando me aproximei eu a achei diferente. Eu nunca a tinha visto longe do esposo. Era como se sua beleza estivesse ofuscada por uma ausência. Faltava-lhe um complemento vital que eu não sabia identificar qual era.
Algum tempo depois, com o retorno do esposo, eu fui visitá-los numa noite fria de sexta-feira. Ela estava radiante. Linda como nunca. Não era a mesma mulher daquela manhã, daquele corredor, daquele instante já passado. Ao lado do esposo, ela recebia um elemento a mais. Coisas que não podem ser explicadas, meu caro.
Histórias de amor são assim, Alfredo. A identificação é tão profunda que a criatura amante não pode se distinguir da criatura amada. Há uma fusão das realidades. As identidades se misturam, tal qual o espelho e a imagem refletida. O amor tem o dom de fundir as identidades, tornando-as uma só, mas sem que as particularidades se percam na fusão. Cada um é um a sós, mas juntos se transformam em uma terceira pessoa que chamamos de nós.
Recorda-se das lições filosóficas de Martin Buber? Ele dizia que o encontro entre as pessoas gera uma terceira ontologia – o nós. O eu, ao encontrar-se com um tu, faz nascer uma terceira realidade, uma terceira pessoa.
A paixão nasce é pela terceira pessoa. Queremos ficar ao lado de quem nos faz parturejar um nós que nos satisfaça e que nos torne felizes. A isso chamamos simpatia, meu querido Alfredo; a isso chamamos paixão, e depois amor.
Não é fantástico este pensamento? O que gostamos no outro é o que sobra do nosso encontro. É o que derrama, o que não coube nos dois. O contrário também é verdadeiro. O que não suportamos no outro é justamente o que resultou do encontro. Juntos nós extraímos o que temos de pior. Com isso nos rechaçamos. A sobra não nos deixa felizes, porque não nos realiza. Aí dizemos que temos antipatia, porque a terceira pessoa gerada é desagradável aos nossos olhos.
Quando eu olhava para a beleza dos meus amigos canadenses, o que verdadeiramente achava bonito era o nós que brotava daquela relação. Eu olhava e identificava a terceira pessoa que deles se desprendia. Assim será o seu jardim e sua casa: uma beleza única, junção de duas belezas que não poderão mais ser vistas sozinhas.
Quem ama quer a criatura amada por perto. O amor é o desejo de permanência. É a eterna vontade de que o outro não se distancie demais. É o lugar da identificação, quando juntos reconhecemos que a trama da vida nos entrelaçou de um modo tão intenso que agora já não há a possibilidade de viver fora do entrelaço.
Eu sou um homem solitário. Reconheço minha solidão e não quero piedade de ninguém por isso. Eu já vivi o grande amor da minha vida e não acredito que possa haver outro esperando por mim. O amor que eu vivi é registro que durará até o resto dos meus dias. Nós nos amamos em medidas tão extensas que já me sinto abastecido para o resto da vida. Eu encontro os sinais de seu amor a sustentarem a minha alma, tal qual o alicerce sustenta a estrutura da casa, mesmo que não esteja ao alcance dos olhos.
Encontrei Flora na biblioteca municipal. Ela descia as escadas com um livro nas mãos. No descompasso da descida, o livro veio ao chão. Imediatamente fui lhe ajudar a recolhê-lo. Quando fixei meus olhos no título do livro, eu não pude acreditar no que eu lia. Em letras garrafais e douradas estava escrito “O amor ao cair da tarde”.
Incrível. Era tarde fria de segunda-feira. Com a queda da tarde, a queda do livro. Eu retirei o livro do chão e o estendi até as mãos de Flora. Ela sorriu para mim de um jeito que até então eu desconhecia. Sorriso inteiro, sem reservas. As mãos trêmulas não escondiam nosso nervosismo. O nosso amor começou ali. Ele durou vinte e seis anos e três meses. Tempo que a vida reservou-me para eu pudesse descobrir a felicidade e seus múltiplos desdobramentos. Do contentamento mais silencioso ao mais gritante. Fui feliz sem reservas. Éramos um. Assim como a casa e o jardim. Eu era a casa, e Flora, o meu jardim.
Quando Flora se foi de mim, como já lhe disse, depois que Flora morreu, vim morar nesta casa. Ela sabia que este canto do mundo é guardião de minhas primeiras memórias. Por isso, ela desejou tanto reformar este espaço. Neste lugar eu nasci e cresci. Depois da morte de meus pais, tudo por aqui ficou abandonado. Iríamos nos mudar para cá. Flora queria construir um grande jardim por aqui. Ela sonhou cada detalhe do que iria ser plantado, mas não houve tempo. Flora morreu um mês depois da reforma estar concluída. Já havíamos planejado a mudança. Eu precisei vir sozinho. Ela sonhou o jardim, mas eu o plantei. Aprendi o ofício sozinho. Nunca havia me interessado por plantas. Eu não tinha opção. A memória de minha
esposa dependia desse gesto. Eu não poderia permitir que o projeto ficasse sem realização. Ela era uma grande paisagista. Antes de morrer fez-me o pedido. Solicitou que eu plantasse o jardim. Por ela.
E assim nasceu o meu gosto pela Jardinagem. Em cada planta que vejo crescer do chão, cumpro o ofício de celebrar a memória de Flora. Foi um jeito que descobri de diminuir a lacuna que sua partida abriu dentro de mim. Eu não posso ser quem eu sou sem que ela seja comigo. O nosso nós não existe mais. Por isso preferi a solidão. Depois que me mudei para cá, nunca mais voltei à cidade.
Alfredo, em minha casa não há espelhos. Eu não quero mais ver o reflexo de minha imagem. Eu não sou capaz de ser eu sem que ela esteja por perto. Eu não quero enxergar a minha imagem de hoje. Foi assim que resolvi o meu conflito de ser só. Se me olho no espelho, minha solidão ficará ainda maior.
Aceitei a morte de Flora, mas decidi que não gostaria de voltar a ter contato com minha imagem. Estou bem. Tenho ocupado boa parte do meu tempo com os estudos e práticas de Jardinagem.
Não quero outra coisa senão cuidar dos meus jardins. Neles eu ressuscito minhas esperanças. Cada semente que morre para depois renascer é uma metáfora de Flora. Se não me vejo, não me sinto só. Loucura? Pode ser que seja. Não ando fazendo questão de sanidade. Fui sano durante muito tempo. Apliquei-me aos rigores da Filosofia, ensinei nas Universidades de tantos lugares do mundo e não quero mais a obrigação do pensamento rigorosamente estabelecido e sistematizado. Não quero mais mensurar a vida como se fosse um corpo que pode ser dissecado. Cansei de ser exato!
Meu querido, eu lhe peço que me desculpe pelo incômodo de meus desabafos. Encare-os como se fossem sementes que poderão germinar no seu coração algum aprendizado.
A propósito, como andam as sementeiras? Nunca se esqueça de que há sempre um cuidado reservado a cada dia. Cuidar de flor é o mesmo que cuidar de um amor. Se descuidar, ele se perde, não prospera.
Com carinho,

Abner

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