terça-feira, 30 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Décimo primeiro dia)















DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO   30.01.2018
CARTAS: VINTE E UM E VINTE E DOIS



Querido Abner,

Desculpe-me pela demora em lhe escrever. O retorno às aulas aconteceu justamente no momento em que a construção do jardim estava repleta de urgências. Agora mesmo não tenho tempo para mais nada. Optei por abrir mão das pesquisas que eu costumava fazer à tarde. Após as aulas tenho feito questão de voltar imediatamente para casa. É que o trabalho no jardim está me absorvendo. Com isso não tenho percebido o tempo passar. A propósito, acho que finalmente experimentei o que os místicos chamam de eternidade. A sensação do tempo inexistente. O processo humano que parece sustentar a vida por meio de outra energia que não o tempo. O envolvimento é tanto que por vezes me perco no dia e me ponho a perguntar: agora é tarde ou é manhã?
Eu, que sempre firmei meus passos na exatidão dos caminhos. Eu, que calculei a vida e ousei representá-la aritmeticamente, agora perdido, entre mudas miúdas de margaridas, gérberas, sempre-vivas, e tantos outros milagres vegetais.
O gramado está todo plantado. Consegui observar com exatidão os recortes estabelecidos. Foi um trabalho árduo, mas prazeroso. Cortar os blocos de grama como se fosse um confeiteiro montando um bolo de aniversário foi muito divertido. Dois vizinhos se dispuseram a ajudar. Viram o meu empenho e se aproximaram. No início eu tive dificuldade, mas aos poucos fui ganhando intimidade com eles. Conversamos muito durante o trabalho. Falamos sobre tudo. Há um senhor muito divertido que tem sempre uma história engraçada para contar.
Meu pai providenciou um pequeno sistema de irrigação. É um prazer inenarrável ver a água sendo jogada com serenidade sobre a grama recém-plantada. Os pequenos ramos verdes parecem agradecer-lhe o favor.
O tempo está bom. O calor já é de verão, embora a primavera ainda seja a regente do tempo. Plantei as mudas crescidas conforme um desenho que havia preparado. Misturei cores. Estou curioso para ver o resultado. O que agora tenho feito é cuidar dos pequenos detalhes. Eles não param de nascer. Tenho a impressão de que, quanto mais eu olho para o meu jardim, mais eu me apaixono por ele. E quanto mais me apaixono, mais reconheço os detalhes que lhe tornarão ainda mais belo. O amor gera o cuidado, não é mesmo?
Outro dia minha mãe estava silenciosa diante da casa. Eu a observei por muito tempo. Ela estava parada no portão de entrada. Tinha no rosto uma expressão de serenidade. Uma serenidade feliz. Eu me aproximei e perguntei em que estava pensando. Ela me disse, como se rezasse – “Não é à toa que Deus começou o mundo plantando um jardim!”.
Eu ouvi a sua fala e fiquei instigado. Intuí que ela estivesse se referindo ao mito do paraíso. Percebi que minha mãe estava confortável em si mesma. Havia uma serenidade em sua fala. A alma estava em profundo estado de contemplação.
Eu já havia experimentado muitas formas de êxtase na minha vida. Êxtase diante das ideias, dos textos e dos assombros metafísicos que as reflexões me causavam, mas não me recordo de ter me aproximado de um êxtase como aquele que minha mãe parecia experimentar.
Pode parecer estranho, meu caro Abner, mas naquele momento eu experimentei uma orfandade dilacerante. Senti o desejo de crer em Deus, assim como você crê. Senti o desejo de ajoelhar-me naquele chão e experimentar o mesmo que minha mãe parecia experimentar.
Eu nunca soube acreditar. Mesmo quando criança, na oportunidade de participar dos encontros catequéticos, eu nunca senti meu coração acreditando de verdade. Nasci ateu? Não sei. O que sei é que Deus não passa de uma ideia, que vez ou outra vem à minha cabeça, mas que não faz nenhuma diferença em minha vida. Eu queria saber crer, mas não sei.
Gostaria de comentar, de sua última carta, o desabafo. Confesso que chorei. Seu amor por Flora, o amor ao cair da tarde, a identificação de seus amigos, tudo isso me fez chegar à gênese de meu sofrimento. Clara me levou de mim. Vez em quando eu ainda me sinto ausente de mim mesmo. É por isso que ainda espero pelo seu retorno. Se não for para ficar, que seja então para me devolver o que é meu.
Com carinho, seu filho,                                                                                                                                                                                                              Alfredo


Meu querido f ilho,

Suas notícias me alegram. Estou curioso para ver o seu jardim. Imaginá-lo já é uma forma de tocá-lo. O cuidado de cada dia faz o tempo parecer inexistir; você tem razão. Volto a dizer, ao coração que cuida de um amor no presente o futuro é apenas um detalhe. Com isso podemos dizer que a eternidade já começou.
É nesse movimento interessante que Clara está lhe devolvendo o que você considera ter sido roubado por ela. O tempo deixou de oprimi-lo, e assim, mesmo que não haja o retorno de Clara, sua devolução acontece.
Em cada semente que necessita de cuidado, você se recolhe. É como se o jardim possuísse o dom de lhe resgatar, de lhe devolver. Possuir-se não é fácil, meu caro amigo. Requer luta diária, resgate a ser pago, já que somos tão ausentes de nós mesmos. Tenho um pequeno hábito que gosto de repetir todos os dias antes de dormir. Faço um breve silêncio e procuro identificar se houve alguma situação em que passei pelo risco de ter sido levado de mim.
Procuro recordar-me do que fiz, do que falei, do que vi, do que ouvi, e até mesmo do que li. Todas estas situações humanas são facas de dois gumes. Podem fazer bem e podem fazer mal. A leitura de um texto pode me levar de mim. Depende de como me porto diante das palavras escritas.
Se ele me leva, de alguma forma eu preciso depois voltar. Volto modificado, mas volto. Faço esse exercício todos os dias. É como se eu fosse o pai e a criança ao mesmo tempo. Deixo que a criança vá descobrir o mundo, mas não permito que ela se perca no meio da multidão.
Buscar-nos ao final do dia é um movimento que não podemos deixar de fazer, meu caro amigo. É como recolher partes de um vaso que se partiu.
Eu percebo que você está bem mais inteiro depois que começou a plantar o seu jardim. Fiquei muito feliz em saber que você tem voltado para casa logo após as aulas. Isso o reaproxima de seus vínculos. Ficar o dia inteiro longe de suas raízes dificultava ainda mais o seu processo humano.
Gostaria de mais uma vez comentar suas descrenças. Eu também já tive meus momentos de incredulidade. Nos tempos da Universidade, eu assimilei a ideia absurda de que o bom filósofo é ateu. Alimentei minha indiferença com o Sagrado até o dia em que fui surpreendido por uma convicção de que Deus existe. Não sei de onde veio. Era um fim de tarde de primavera. Eu estava terminando de plantar um canteiro de alfaces. Quando me levantei do chão, alguma coisa estranha havia acontecido comigo. Uma sacralidade parecia ter tomado conta de mim. Olhei o canteiro de alfaces, as mudas miúdas, indefesas, confiantes na proteção de minha pequena cerca de barbantes, e um choro manso de lágrimas começou a descer dos meus olhos. Chorei muito naquele instante. Chorei sem saber a razão. Chorei obedecendo a um motivo oculto, coisa que não pertence ao mundo da razão.
Desde então eu alimento a certeza de que a presença de Deus é uma constante em minha vida. O interessante é que minha experiência de Deus não aconteceu nos templos, nem tampouco a partir das motivações daqueles que se dizem especialistas em religião. A propósito, ando pensando que os especialistas em religião são mais vulneráveis às forças do ateísmo que nós, pobres mortais. Eles correm o risco de se tornarem profissionais da fé. Já parou para prestar atenção na fala de alguns líderes religiosos? Parecem cansados. Não que não acreditem no que falam, mas falam como se não acreditassem. Talvez tenham se perdido no executivo de suas missões. Perderam a alegria do seguimento.
Você deve ter experimentado isso no seu curso de Filosofia. Há professores que estão cansados do que sabem porque não renovaram os motivos que os fazem saber. O tempo passa e o sabor vai ficando pelo caminho. Saber e sabor estão presos na mesma raiz, meu caro Alfredo.
Religião é a mesma coisa. Ter fé é uma forma de não saber. Muitos pensam que é o contrário. As grandes religiões não começam nas respostas. Elas partem é de grandes perguntas. As religiões, muito mais que responder a perguntas, ajudam-nos a conviver com as dúvidas. Ter fé é viver em estado de abertura para que Deus aconteça.
Eu confio na ação de Deus. Mas não é em tudo que eu consigo acreditar piamente. Fica sempre um pequeno espaço para a dúvida, afinal eu sou humano. Mas a dúvida que fica é aquela que me faz continuar buscando por Deus. É uma dúvida criativa que não afronta o Sagrado, mas permite que Ele seja o que é.
Eu tenho pensado muito nos problemas religiosos do nosso tempo. As interpretações equivocadas do Sagrado estão gerando guerras ao longo do mundo. O problema político é consequência. O pano de fundo é religioso.
Nem sempre há respeito entre as religiões. Elas não se encontram. O encontro não acontece porque não estão voltados para as perguntas fundamentais que norteiam a religião. Eles se prendem nas respostas que encontraram e, por isso, param nas diferenças.
As respostas são diferentes, mas as perguntas são as mesmas. Se esquecêssemos o que sabemos sobre Deus, talvez conseguíssemos recriar o mundo de forma mais harmoniosa. Deixaríamos as respostas e sobreviveríamos das perguntas. Utopia? Pode ser. Quem pode sobreviver sem o cultivo delas?
Eu vivo a minha busca. Vez ou outra eu descubro alguns teólogos que sabem lidar bem com as perguntas. Não estão tão preocupados em encontrar respostas. Exploram com o devido respeito as questões humanas. Colocam-nas na vidraça da casa de Deus para que sejam iluminadas com a luz que vem de dentro da casa.
São os teólogos que nos ensinam que a Revelação de Deus é uma fonte inesgotável. Deus continua falando ao mundo, porque o Seu grande objetivo é a comunicação de Seu amor.
Há outros teólogos que já são especialistas em nos indicar onde é que fica a casa de Deus. Descrevem sua fachada, as cores das paredes e até contam minúcias da construção. Eu os escuto, mas não movem o meu coração. Há outros que são místicos. Não se ocupam das perguntas, nem das respostas. Querem apenas a aventura da procura. Estes, os místicos, não descrevem a casa, mas nos fazem entrar nela, porque já a encontraram antes de nós, por meio de sua busca.
Eles nos conduzem pelos cômodos da morada divina e nos permitem apreciar a intimidade de Deus, sem que as palavras sejam ditas. Diferente, não é?
Os místicos geralmente são chamados de loucos. Concordo. A mística é uma espécie de loucura. Mas se não fossem loucos não seriam místicos. São loucos por Deus, são loucos pela humanidade. São loucos pela vida, mesmo quando precária. Correm contra a correnteza. Não fazem do discurso religioso um peso sobre os ombros porque sabem que a felicidade necessita de leveza. Eles não se prendem aos lugares, porque descobriram que os lugares podem se tornar uma oposição à liberdade.
São coisas da vida, meu caro jardineiro. Não tema a incredulidade. Descubra nas
perguntas a sua religiosidade. O jardim é uma fala de Deus. Escute-a como se
fosse um menino que deseja ouvir a voz da mãe. A voz é suave, por isso o seu silêncio será necessário.
Sem mais, peço a Deus que o abençoe sempre.
A palavra é uma forma de bênção.
As flores também.
Flores são palavras.
De Deus.
Com carinho,


Abner

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