DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO 28.01.2018
CARTAS: DEZESSETE E DEZOITO
Querido Abner,
Obrigado por me conceder a graça de conhecer este território
tão sagrado de sua vida. A dor narrada
repercute dentro de mim, mas sobre ela muito pouco posso dizer. Sou pequeno
demais perto da grandeza de sua alma. Não ousaria tentar descrever o sentimento
que o relato de sua perda me provocou. A palavra não é capaz de abarcar a
experiência vivida. Limito-me a recolher o sentido de sua jardinagem, a mística
que lhe fez desejar a terra, as sementes, o plantio.
Hoje eu acordei mais cedo. Quis acreditar no velho ditado de
que Deus ajuda a quem madruga. Antes mesmo da chegada de sua carta, eu já havia
iniciado o preparo da terra. Meu pai quis ajudar, mas pedi que não o fizesse.
Achei melhor não lhe confessar as razões terapêuticas da iniciativa do jardim.
Deixei que ele pensasse que eu estava ficando louco. Aliás, eu também ando
acreditando nisso.
Assanhado pelo desejo de vencer o tempo, hoje resolvi
trabalhar até uma hora a mais do que havia projetado. Confesso que ainda me
sinto inapto para a atividade, mas prendi minha atenção no aprendizado que o
processo de feitura pode me proporcionar.
A terra é boa e parece descansada. Não, esta frase não é
minha. É de meu pai. Apenas repeti o que
ele disse. Ele havia pensado em plantar algumas palmeiras-imperiais alguns
meses atrás, mas o projeto ficou só na adubação da terra.
Arei os espaços como você me sugeriu. Não foi difícil. Levei
quatro dias para esta aragem. A terra
estava macia e limpa. Quis as formas circulares. Desenhei na terra quatro
grandes círculos. Cada um deles tem três metros de diâmetro. No meio dos grandes
círculos, desenhei uma forma de losango, onde pretendo fazer o centro do jardim.
O projeto está quase pronto. Agora preciso escolher o que vou
plantar naquele lugar. Confesso que já é tarde e o sono ainda não veio. Se não
fosse causar tanto escândalo, eu gostaria de dedicar algumas horas da noite
para alguns arremates nas formas. Eu as demarquei com pequenos retalhos de
madeira e aproveitei as serragens para visualizar os formatos.
A noite é longa demais para quem não consegue dormir. Há
alguns dias, eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse em Clara. Já
estou um pouco melhor. Agora penso também no jardim. Não sei se há diferença entre
estas duas realidades. Acho que sou obsessivo compulsivo.
Eu estou fazendo o jardim porque alimento o sonho de que ele
me traga Clara de volta, ou então que ele a retire definitivamente de dentro de
mim. Enquanto isso, eu não durmo. Eu só sonho, mas acordado.
A propósito, não acha que já posso receber o manuscrito da
nova obra? Já não somos amigos?
Com carinho,
Alfredo
Meu querido jardineiro,
Sofrendo com as insônias? Lamento. Noites mal dormidas são
semelhantes ao inferno. Para quem não dorme, as horas não passam. Creio que o
inferno também seja um lugar onde o tempo é estagnado. Mas o paraíso também não
é assim? Já ouvi dizer que na ilustração escatológica do paraíso o tempo não
passa. Interessante isso. A mesma concepção de felicidade eterna também se
aplica à condenação definitiva: o tempo estagnado.
Mas há uma possibilidade de redenção em tudo isso. Quando sua
mente começar a se ocupar ainda mais do seu jardim, eu sei que seus sofrimentos
serão modificados. Amor e ódio são impulsos
que nascem de uma mesma fonte, meu caro. O que lhe retira o sono é esse ódio
velado, nutrido por você mesmo. Resquícios da perda, da derrota que ainda não
foi digerida. Ocupar-se de um jardim vai lhe ajudar a expulsar este sentimento
que tanto lhe agride.
É como retirar as ervas daninhas que crescem no meio das
flores. Há sempre uma tiririca insistindo em sufocar o pequeno broto de flor. É
nessa hora que o jardineiro se presta a cuidar da flor. Arranca o que quer
sufocá-la. O mesmo não acontece com a gente? Vez em quando percebemos o
surgimento de realidades nocivas à nossa realização. O problema é que nem
sempre agimos. Deixamos crescer e quando queremos arrancá-las já não podemos.
Ficaram maiores que nós.
É por isso que cada vez mais eu me convenço de que o maior
inimigo que podemos ter na vida é o nosso coração. Este, quando rebelado,
torna-se o opositor primeiro de nossa felicidade.
Tive um grande amigo que morreu vítima do próprio coração. No
auge do amor experimentado ao lado de uma elegante dama, descobriu que ela o traía.
E o pior, com seu irmão mais novo. Ao saber da história, expulsou de sua casa a
dama elegante e nunca mais quis ver o irmão. Amargurou-se tanto que chegou a
passar anos e anos sem sair de uma de suas propriedades. Trancafiado em seu sentimento
de derrota e amargor, esqueceu-se de que poderia refazer-se, tal qual a semente
se refaz depois do duro golpe da morte. A sua esposa também era minha amiga.
Ficou muito arrependida e quis reconciliar-se com ele. Ele não quis. Não quis
perdoar, tampouco reencontrar a paz.
Alguns anos mais tarde, eu tive oportunidade de encontrar-me
com ele. Estava mais velho do que deveria. O ódio envelhece. Estava curvado,
vítima de uma enfermidade que não podia ser radiografada e que os exames
convencionais não detectaram.
Eu o observei por um tempo em silêncio. O seu estado de
abandono era tanto que eu tive vontade de deitá-lo ao colo, tal qual o pai
aconchega o filho ao perceber-lhe frágil. O respeito humano não me permitiu.
Limitei-me a ouvi-lo. Ele falou de todo o acontecido sem nenhuma serenidade na
fala. Ainda estava inflamado, tal qual o corte, distante a poucas horas da
lâmina.
O tempo para ele não havia passado. Ainda estava na estação
em que perdeu o último trem para a vida. Insistia em permanecer ali, tal qual o
assassino e o cadáver de sua vítima, prolongando a condenação que a brutalidade
da cena lhe outorgara.
Eu pude concluir que os traidores ainda estão vivos dentro
dele. A traição ainda não havia terminado. Ele legitimou o seu coração como
seus representantes. O irmão traidor já havia cruzado a esquina há muito tempo.
A esposa infiel também, mas ele insistiu que eles ficassem alojados no seu
íntimo. Não os expulsou.
Cada vez que ele permitia que o ódio fosse ressentido, a cena
da traição era novamente construída. O ódio tem o poder de fazer a cena
dolorosa se prolongar no tempo. Ele prende o cadáver na sala e impede o
sepultamento que favorece a organização do luto. Quem não sepulta seus mortos
não pode iniciar o processo de restauração interior. Dessa forma, a vida se
transforma em velório eterno.
Alfredo, logo depois da morte de minha esposa eu pude avaliar
que o velório é um ritual que dificulta ainda mais a experiência da partida.
Velar um corpo é estender o sofrimento ainda mais. Fixar aquela imagem fria e
dramática na memória é um gesto agressor que só depois saberemos identificar.
Gostaria de não ter visto minha esposa morta. Preferiria permanecer com a
recordação do seu sorriso. Nem mesmo a dor foi capaz de retirá-lo de seus
lábios. O corpo morto parece ter um peso imenso sobre as nossas lembranças. Eu
prefiro me recordar da leveza que um dia fez que me apaixonasse por ela.
Eu nunca expulsei a minha mulher do meu coração, mas
juntamente com o seu corpo eu precisei sepultar muitas outras coisas que não
possuíam sentido sem ela. Era o único jeito que eu tinha de inaugurar um novo
tempo em minha vida.
Precisei me desvencilhar de tudo o que era material e que
evocava sua presença dentro da minha casa. Precisei acreditar na sua morte.
Doei seus vestidos. Eu precisava aprender que o corpo que os vestia não
voltaria a procurá-los. Desfiz o seu espaço; doei seus sapatos. Enfrentei a
crueza da realidade e não quis fugir da dor daquela hora. Conservar a materialidade
que pertencia ao morto nos faz perder tempo com o que é acidental.
A vida é assim. Nós nos transformamos no que guardamos.
Quando eu era jovem fui terrivelmente traído por um colega de faculdade.
Guardei as lembranças da traição durante meses. Cada vez que recordava o fato,
um novo ferimento era aberto em minha alma. Foi então que percebi que alimentar
a mágoa não era uma decisão inteligente. Decidi que sepultaria aquelas
lembranças nocivas. Compreendi que ressentir a dor é uma injustiça que
cometemos contra nós.
Meu amigo não quis fazer o mesmo. Ele não sepultou os
traidores. Guardou-os com o cuidado como quem guarda uma joia rara. Permitiu
que a traição polarizasse todos os seus sentimentos e, assim, sofreu a pior
traição que um ser humano pode sofrer. Traiu-se. Elegeu o seu coração como o
seu maior adversário. Dormiu com o inimigo, conviveu com o inimigo e por ele
foi vencido.
É, meu caro Alfredo; quem não expulsa os inimigos do coração,
quem não acolhe o fracasso para com ele aprender e quem não sepulta os seus
mortos corre o risco de transformar a vida numa paixão inútil e sem encanto. Ao
invés de lutar a favor de si, luta contra.
As armas que usa? Os ódios e os rancores. Quando permito que
o ódio me domine, é como se eu estivesse apontando uma arma contra minha
cabeça. Porque quando eu prefiro o ódio, de alguma forma estou deixando de lado
o amor. A fonte é sempre a mesma, volto a dizer. O coração não sabe fazer as
duas coisas ao mesmo tempo. Ou ele está a serviço do amor, ou ele está a
serviço do ódio. É uma questão de escolha.
Espero que você volte a dormir melhor. Boas noites de sono
são importantes para a construção de um homem feliz. Nunca se esqueça disso!
As formas circulares ajudarão a realçar a beleza das flores.
Formas circulares sugerem afeto, sensibilidade. Formas quadradas e retas
sugerem racionalidade. Jardim é lugar de afeto, de silêncio que dispensa a
argumentação. Sugiro que dê preferência às flores de porte menor nos centros
dos círculos. Cerque-as de pequenos arbustos que façam prevalecer a
circularidade da forma e que também se prestem como guardiões fiéis. Eles
impedirão que os cães venham pisar sobre as flores mais frágeis. Assim, elas
ficarão mais protegidas dos que não sabem amar os jardins.
Quanto ao manuscrito, creio que não seja momento para
enviá-lo. Você está ocupado com outras prioridades. O tempo de tê-lo em mãos há
de chegar. Quanto à sua pergunta final, não me esquivo em responder. É claro
que somos amigos.
Intuo que sejamos grandes amigos. Nunca serão esquecidos os
amigos com quem partilhamos as nossas verdades. É só o que temos feito em nossa
correspondência. Mas preciso confessar-lhe um fato. Já tenho tanto apreço por
você que o considero mais que um amigo, um filho.
Termino dizendo que estou orgulhoso de você. Que suas flores
lhe despertem para o esquecimento de suas mágoas. Não resguarde os seus
inimigos. Permita que somente coisas boas permaneçam em você.
Na continuidade da cura, despeço-me.
Com carinho,
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