sábado, 27 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Oitavo dia)

 

DUAS CARTAS POR DIA
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO   27.01.2018
CARTAS: QUINZE E DEZESSEIS



Caro Abner,

Tudo bem, eu estou vencido. Decidi que comigo poderá você. Estou disposto a dar uma carta branca ao poeta que você diz estar amoitado em mim. Quem sabe assim o filósofo reencontre o equilíbrio perdido?
Fiz o que você sugeriu. Retornei ao lugar das flores vaidosas. Elas eram muito mais. Decerto se reproduziram numa orgia vegetal. O vento era menos frio. Juntas pareciam um exército de Napoleão, pronto para a batalha. Vaidosas como o rei a quem servem.
Demorei ali por um tempo que não sei medir ao certo. Acho que fiz a experiência do tempo que parece não ser tempo. O tempo quando não é tempo já é eternidade. Há algumas coisas que nos antecipam isso, não é mesmo, meu caro mestre?
Olhei aquelas flores e fiquei me lembrando de suas palavras, aquelas que doeram mais que o comum e que diziam que Clara foi embora porque eu não soube viver a contemplação do amor. Eu preferi a dissecação calculada. Acho que você tem razão.
Eu olhei as flores em silêncio. Não precisei de perguntas. A beleza me bastou. Naquele momento, eu me recordei da história dos girassóis, mas ainda não me sinto preparado para falar sobre Deus. Aliás, eu nunca imaginei que você fosse um homem de fé.
Tentei pensar sobre o assunto, mas a beleza me distraiu. Por um instante, ainda que por um instante, eu me esqueci de que sou inteligente, que penso, que calculo e que gosto de  estabelecer gráficos para demonstrar a verdade de minhas intuições. Não tive argumentos para dizer se cria ou não em alguma realidade absoluta. Eu estava totalmente afetado pela beleza daquele lugar.
O belo tem o poder de nos calar. Eu não sabia disso. Foi um acontecimento redentor. Acho que estou esquisito depois daquela subida na montanha.
 Ando sentindo um desejo de ter aquela expressão da beleza por perto. Se eu pudesse, transplantaria aquela parte do mundo para o quintal de minha casa. Será que estou querendo plantar flores? Não sei. O que sei é que hoje, neste intervalo entre dia e noite, o meu coração sentiu vontade de rever Clara, ainda que fossepela última vez. Olhar da mesma forma que olhei para as flores da montanha. Em silêncio. Sem livros, sem palavras, sem argumentos. Olhar com demora. Só para intuir o mistério que nela reside. Olhar só para não esquecer o azul daqueles olhos. Olhar para decorar o contorno daquele rosto, para depois eu conviver melhor com essa ausência tão dolorosa. Hoje eu descobri que não decorei o rosto de Clara. Acho que olhei pouco para ela, e por isso não consigo me recordar bem dos seus traços.
Andei observando que a frente de minha casa é bastante ampla e bonita. A terra é boa. Meu pai ficou muito surpreso quando lhe falei das intenções de plantar um jardim. Disse que posso plantá-lo quando eu quiser e que poderia me ajudar, caso eu necessitasse de alguma coisa.
Confesso que ainda tenho medo, mas o que é o medo diante do desejo de ter a beleza ao alcance dos meus olhos?
Desejoso, despeço-me.
Alfredo


Meu caro amigo,

Há tanto brilho em meus olhos que nem preciso da luz de meu velho abajur, que de tanto passar noites e noites aceso parece cansado.
Felicidade nos faz enxergar, mesmo no escuro. O que agora vejo é o primeiro passo do retorno de Clara em direção à sua casa. Suas notícias me trouxeram boas intuições.
Quanto à sua indisposição para pensar em Deus, não se preocupe. No momento em que você se percebeu calado, totalmente absorvido pela beleza daquele lugar, era no colo de Deus que você estava. Não há necessidade de querer saber alguma coisa sobre o criador se Nele estamos encontrados.
Mas vamos ao que interessa. O seu jardim espera por você. É a hora de criar o seu espaço de encontro consigo mesmo. Demarque o território, desenhe os espaços no chão, sonhe o seu jardim. Projete-o sem pressa. Imagine as cores que pretende reunir, as espécies e os perfumes que quererá sentir. Jardim é tudo isso.
É explosão de cores e odores. Prepare as sementes e estude os cuidados que deverão ser tomados. Ocupe-se com a leitura que o ajudará a compreender os cuidados específicos de cada espécie.
Nunca se esqueça de que o que é bom para um tipo de flor pode representar a morte para o outro. Pessoas também são assim. Aprendendo a lidar com as flores, você ficará muito mais aguçado e perspicaz na relação com os humanos.
Como estou feliz por você, meu caro Alfredo. A Filosofia finalmente acontecerá em você. Deixará de ser mera expressão teórica para se entrelaçar na existência concreta. Só assim você será capaz de compreender o verdadeiro sentido da Filosofia, que é aliviar a existência e tornar a vida humana mais feliz.
Durante muito tempo na minha vida, eu fui como você. Vivia atrás de respostas para tudo, até o dia em que vi minha esposa ser vitimada por um câncer bastante agressivo. Não houve tempo para perguntar, nem para fazer absolutamente nada.
Era uma manhã iluminada de primavera, quando o sol ainda brilhava tímido. O brilho era só para aguçar os seres vivos que se esconderam no interior da terra, com o intuito de sobreviverem às geadas e aos ventos cortantes da última estação.
Eu não tinha onde me esconder. A vida estava ali, sem cobertor e sem esconderijo para mim. Quis fazer perguntas, mas percebi que elas não serviam para nada. A morte cortou minha língua, castrou minha coragem de perguntar qualquer coisa. Do descobrimento da enfermidade até a sua morte sofri um processo de desconstrução. Vi ruir todas as minhas antigas seguranças.
Fiquei paralisado por alguns meses, mas, motivado por um conselho amigo, resolvi reagir. Eu precisava ocupar o meu tempo, aliviar o peso da existência que estava sobre os meus ombros. Eu já estava afastado das aulas na Faculdade.
Sozinho naquela casa onde fui tão feliz ao lado de Flora, tudo parecia sem sentido, foi então que me veio a coragem de realizar o último pedido que minha esposa me fez, antes de partir: que eu me mudasse para este lugar e que aqui plantasse o jardim que ela havia projetado. Eu não conhecia a ciência das flores.
Precisei aprender. Esqueci que não sabia e iniciei o projeto. Arei a terra. Arado de pequenas proporções, feito com as mãos. Enquanto eu construía os sulcos na terra, outro movimento, de natureza diferente, cicatrizava as feridas da minha alma. Fiz a sementeira. Resguardei as sementes no calor da terra com o intuito de que passassem pelo doloroso processo de morrer. Aos poucos, vi maravilhado o despontar desconcertante das sementes ressurretas.
Ao jogar as sementes sobre a terra, sem saber que o fazia, alguma coisa também estava sendo semeada dentro de mim. Em pouco tempo, eram pequenos caules. Veio a hora do plantio. Retirei da sementeira e levei ao solo definitivo, demarcado, bordado de desenhos retos e circulares.
Cuidei de cada detalhe. Foram meses inteiros de total dedicação. O jardim tornou-se o meu projeto de vida. Para ele eu desviei toda a minha capacidade filosófica. Na lida simples de todo dia, eu fui desaprendendo de ser grande. As complexidades de antes já não me serviam mais. A morte de minha esposa arrancou-me do antigo e confortável estado de vida. O jardim foi o lugar do meu recomeço. Foi nele que eu me dispus a reencontrar um sentido para a minha
existência.
O jardim e eu. Descobri que havia uma conexão possível. Ambos precisavam viver o tempo das esperas, um itinerário que resultaria num florescimento. Aceitei o desafio. Enquanto meu jardim crescia, minha dor aliviava. Por não perguntar, a angústia aquietava-se. A pergunta aguça a dor. O silêncio acalma. Não foram poucas as ocasiões em que meu choro misturou-se à terra que eu cultivava. Caí prostrado sobre os canteiros e sobre eles solucei inúmeras vezes.
As sementes cumpriram o destino vegetal de florirem ao seu tempo. E, miraculosamente, o mesmo se deu comigo. Ao permitir que minha perda se concretizasse sem ilusões, ao ver-me nu e solitário, ao aceitar a partida de minha esposa, a vida foi reencontrando espaços em meu coração.
Precisei aceitar a perda. E ao me reconhecer perdedor eu optei por ocupar-me da simplicidade do jardim. Deixei de lado as perguntas inférteis. Foi então que misteriosamente pude viver o processo natural do florescimento, a exemplo das espécies que no jardim eu havia plantado.
A vida é assim, meu caro Alfredo. Vez em quando a gente precisa prestar atenção na música que está sendo tocada. Entrar no ritmo da vida é uma questão de sabedoria. Se ela pede  implicidade, que então a gente atenda ao seu pedido. Só  assim a gente pode superar os pesos das consequências desagradáveis que nos legam os fatos. Quero ser leve. Essa leveza eu tenho aprendido com os jardins. Por isso insisto tanto para que você plante o seu. Estou propondo uma terapia que funcionou comigo. Eu estava sofrendo do mesmo mal que você hoje sofre. Eu era complexo demais. Hoje, não. O jardim me fez jogar fora o peso da prepotência. Hoje minha luta tem sido outra. Quero cumprir o mesmo processo dos jardins. Quero ressuscitar todo dia, assim como as sementes ressuscitam na terra. Mas ressurreição requer morte. A morte é inevitável para quem deseja florir-se no tempo certo. A simplicidade vegetal é uma forma aprimorada desse aprendizado.
A leveza é dom. Aprecio os que sabem viver no pouco, os que viajam com poucas malas e os que descobriram que, ao contrário do que pensamos, as coisas não nos deixam mais ricos, apenas mais pesados.
Infeliz é aquele que se identifica com o que tem. Aquele que não sabe diferenciar a felicidade das realidades materiais. Aquele que confunde a felicidade com a alegria.
Meu caro Alfredo, quando tive oportunidade de perder a pessoa que mais amei na vida, juntamente com a perda pude receber um aprendizado que nunca mais quero perder de vista. Nada pode ser mais rico e precioso que as pessoas que amamos.
Até mesmo as grandes riquezas só têm valor se forem desfrutadas ao lado de quem nós devotamos apreço. Não há prazer em permanecer solitário em um castelo repleto de beleza. A riqueza só tem sentido quando é para ser dividida.
Tenho certeza de que seu jardim tomará conta do seu coração. Clara ficará em segredo, por enquanto. Não permita que as lembranças que lhe infelicitam prevaleçam sobre você. Simplifique-se. Pare de fazer perguntas. Deixe-se plantar juntamente com as sementes. Morra no processo para que um novo homem possa reaparecer, e quem sabe assim, deste novo homem, Clara não queira mais fugir.
Obrigado por ter ouvido meu conselho. Mãos à obra. Um mundo novo começa a se abrir diante dos seus olhos. Só lhe peço uma coisa: seja um jardineiro fiel.
Com carinho,


Abner

Nenhum comentário:

Postar um comentário