domingo, 21 de janeiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (Segundo dia)

                               
DUAS CARTAS POR DIA TEMPO DE ESPERAS: O LIVRO
CARTAS: TERCEIRA E QUARTA  -  21.01.2018

Prezado Abner,

Obrigado por me responder tão prontamente. Não posso acreditar que o homem que escreveu “As imposições da existência”, obra que causou profundas mudanças em minha vida, tenha escrito um texto só para mim. Estou realmente muito honrado. Também estou aliviado, pois, depois de enviar-lhe a carta, fui tomado por um terrível arrependimento. A releitura me fez identificar algumas infantilidades, fato que me deixou bastante desconcertado.
Compreendo perfeitamente sua objeção em me enviar o novo livro. Concordo. Trata-se de uma obra ainda não publicada. Ao ler suas explicações, sentia ainda mais vergonha de minha carta. Confesso que ela não passou por maturação alguma. Enviei-lhe tão logo estava terminada.
Prezado professor, a história que tenho para lhe contar é muito simples. Tão simples que chego a ter receio de que possa lhe parecer banal. Aliás, acho desconfortável demais encontrar as palavras que possam narrar o que comigo ocorre. De qualquer forma, tentarei aproximar as palavras do acontecimento, e deles fazer o casamento.
Tudo começou quando conheci Clara, a mulher mais bonita que cruzou meus caminhos. Olhos verdes, cabelos negros e pele clara, ela parecia uma personagem da literatura universal. Inteligente, sensível, Clara conquistou-me tão logo eu a vi pela primeira vez. A luz que havia em seu nome derramou pelos caminhos da minha alma. Uma imensa claridade me envolveu e me arrebatou do tempo. Engraçado, mas foi a primeira vez que na vida pude esquecer minha inadequação com o mundo. Pela primeira vez, uma realidade se sobrepôs à importância do sonho de sair de meu lugar, de ser grande e de receber titulações que me conferissem um prestígio internacional.
Nós nos conhecemos numa casualidade. Era manhã de outono. Estávamos numa livraria e procurávamos pela mesma obra. Seguramos o livro no mesmo instante. Nossas almas estavam distraídas. Foi amor à primeira vista.
A partir do livro que desejávamos, já iniciamos uma boa conversa. Tínhamos informações diferentes sobre a mesma obra. Rimos e discutimos a coincidência da procura. Não era um livro comum. De maneira rápida e vigorosa, iniciamos os nossos encontros. É como se, cientes da brevidade da vida, não quiséssemos perder tempo.
Almas órfãs quando se encontram não se submetem mais aos malogros e sofrimentos das distâncias. Na primeira semana, tentei investigar sua vida, mas ela ainda se mostrava reticente em contar-me sobre seu passado. Ela sorria e dizia que o presente é o lugar do sentido, e com o tempo iria apresentar-me sua história. Eu me revelei inteiro.  Contei-lhe todos os meus segredos. Revelei-lhe minhas aspirações e fiz questão de mostrar-lhe todas as minhas apetências acadêmicas.
Já na segunda semana eu propus uma rotina de estudos. Achei que poderíamos fazer crescer ainda mais nossas afinidades. Ocupei-me por introduzi-la nos mistérios da Filosofia e o fiz com dedicada atenção. Lemos juntos O banquete de Platão e chegamos a iniciar a lógica de Aristóteles. Mas não tivemos tempo de ir além.
Numa daquelas poucas manhãs de outono, curto espaço de tempo em que durou nossa história, recebi um bilhete deixado por ela comunicando-me que não iríamos mais nos encontrar. Mais tarde, pude saber a razão do abandono. A notícia me veio pelo professor Lamartine, de quem Clara dizia-se também amiga. Segundo o professor, Clara havia partido com um vendedor de flores, um moço qualquer de quem nem sequer sei o nome.
Eu não podia acreditar em tudo o que estava acontecendo. O pouco tempo ao lado de Clara já me trouxera a certeza de que havíamos nascidos um para o outro. Eu estava certo de que Clara era parte do destino final de minhas procuras. Em Clara eu havia avançado quilômetros e quilômetros de minha partida. E dela eu percebia o mesmo.
Professor Abner, esta é a razão do meu sofrimento. Desde que Clara foi embora é como se as estruturas do meu mundo não existissem mais. O amor que sinto por ela tem ruído minhas esperanças, meus sonhos. É por isso que lhe escrevo. Por que o amor machuca tanto?
Desde muito cedo, escutava minha mãe dizer que só o amor é capaz de dar jeito nas pessoas. Na sua maneira simples de compreender o sentido das coisas, minha mãe sempre acreditou que o amor é o grande responsável pela costura da vida. É ele que alinhava o sentido da existência, pois ele é a grande riqueza que a condição humana herdou.
Prezado professor, como posso compreender que a minha maior riqueza possa fragilizar-me tanto a ponto de me retirar a capacidade de ser quem sou? Como posso compreender que a força que dizem ser capaz de reconstruir todas as coisas possa estar destruindo a minha totalidade? Quando a gente ama, é natural que a gente se desarmonize?
Confesso que neste momento da vida não consigo acreditar nos ensinamentos de minha mãe. Há uma verdade superior, filosófica a respeito dessa questão que possa me socorrer? Concordo plenamente com você. A reflexão nos salva. Por isso lhe procuro. Quero resolver essa perda de maneira inteligente e racional. Não faz sentido me desprender de meu sonho, prejudicar o meu projeto de vida por causa de um sentimento tão destruidor.
Não sei se posso esperar sua resposta. Receio que considere pueril demais o motivo que me assola. É provável que sua obra não esbarre nestas mesquinharias, mas não lhe posso omitir que esse é o motivo de meu sofrimento. Se achar que mereço sua atenção, ficarei honrado de me ocupar com suas respostas.
Atenciosamente
Alfredo



Meu caro Alfredo,

A sua dor chegou por aqui. Adentrou minha casa. Veio no resguardo protetor de um envelope pardo. Suas palavras cumpriram a função. Por meio delas, pude perscrutar os territórios de seu coração tão machucado pelo rejeito.
Alfredo, não é fácil estabelecer uma disputa com um florista. Os especialistas em flores possuem os segredos dos jardins. Não queira viver este embate. É certo que perderá. A Jardinagem é uma arte milenar, muito mais antiga que a Filosofia. Há muita sabedoria escondida na ciência do semear, cuidar e colher flores.
Meu caro, há uma diferença fundamental entre a Filosofia e a Jardinagem que vale a pena ressaltar. A Filosofia é o lugar da complexidade. A Jardinagem é o lugar da simplicidade. São territórios muito distintos. A Filosofia é o campo das perguntas e respostas. O jardim é o campo onde a vida prevalece misteriosa, mas ao mesmo tempo totalmente revelada. Por mais instigante que seja o contexto da complexidade filosófica, vez em quando a gente se cansa dele. O jardim é o lugar da contemplação, e a contemplação não é outra coisa senão o descanso do pensamento. É por isso que vez em quando a alma grita pela necessidade de silenciar-se. Grita pelo direito de cessar as perguntas, de interromper, ainda que temporariamente, a produção de respostas.
O amor não seria isso, meu jovem Alfredo, o conforto da contemplação mística que o outro nos desperta? Sei que não é fácil compreender tudo isso. A contemplação não pertence aos territórios da inteligência. Pertence aos da sabedoria. Eu também já perdi muito tempo correndo atrás de perguntas e respostas. Hoje eu espero que elas me venham naturalmente. Descobri que a contemplação minimiza as ansiedades que antes me roubavam a alegria.
Não seria mais sábio de sua parte, em vez de estabelecer o combate, apreender a tática do inimigo?
Alfredo, respeito sua dor. Sei o quanto amar e ser amado é aventura ardilosa. O amor é um aconchego desejado por todos nós. Quando o encontramos, é natural que o queiramos para sempre. Mas nem tudo na vida acontece em conformidade com nossos desejos. Por vezes a materialidade do aconchego é desfeita, vai embora. E então sofremos com a ausência. É como se uma ponte nos fosse retirada. O acesso terminou. A pessoa a quem amamos oportuniza-nos chegar a lugares antes desconhecidos. Esta chegada a que me refiro produz satisfação interior. Ela conforta as orfandades do nosso coração, diminui nosso medo de ser só. Com isso as metas  futuras não se sobrepõem ao momento presente. Quando amamos e somos amados, o futuro é apenas um detalhe, porque o presente torna-se imenso, determinante.
Não foi isso que fez Clara com você? Talvez, pela primeira vez na vida, você tenha esquecido sua obsessão pelas metas futuras, pelo sucesso que ainda habita o amanhã, pelo reconhecimento que você tanto espera receber.
Por quê? É simples. Porque no tempo em que Clara permaneceu ao seu lado, o presente prevaleceu. Ela preencheu suas lacunas interiores com um amor que até então você ainda não havia experimentado. É, meu caro, para quem tem no presente um amor a ser vivido, o futuro é apenas um detalhe que pode esperar. Mas agora, ao provar o amargo de sua ausência, a lacuna parece ainda maior. A tristeza que a perda provoca lhe ausenta de si mesmo, e, com isso, tudo se dissolveu no ar. Antes de Clara chegar, o seu tempo desejado era o futuro. Clara começou a lhe curar dos exageros deste desejo. Fez-lhe olhar o presente com mais atenção. Bordou os seus dias com detalhes simples, mas belos. Quebrou seu cotidiano antes tão monótono, pondo nele um vigor que lhe era ausente. Mas ao ir embora, deixa-lhe sem tempo algum. Sem ela, não há presente, tampouco futuro.
Alfredo, sua mãe está coberta de razão. Só o amor pode encher a vida de sentido. É a partir dele que desvelamos nossa verdade fundamental. O amor que damos e recebemos funciona como equilíbrio para nossos pés. Todos os desdobramentos práticos de nossa vida dependem deste equilíbrio. A partida de Clara lhe desequilibrou. Depois dela você compreendeu que só a Filosofia não basta para lhe preencher o coração. O futuro e suas projeções perderam o brilho. O peso do presente lhe amarra ao solo de sua realidade crua. O impasse está estabelecido. Como voltar a sonhar o futuro? Como reorganizar os afetos?
Alfredo, isso que você sente é dor de amor. Aguda, eu sei, mas profundamente fecunda. Nessa dor há uma infinidade de sementes esperando pelo direito de nascer. Não impeça este nascimento.
Veja bem, a ausência de Clara pode lhe ajudar a clarificar ainda mais as suas metas futuras. A dor que por ora lhe pesa pode lhe servir como referencial para alguns questionamentos que considero válidos.
O reconhecimento que você tanto persegue é realmente importante? Por que a presença de Clara lhe fez perder, ainda que temporariamente, a obsessão pelo sucesso?
Alfredo, vale a pena investigar os seus motivos. Já vi muita gente se perder em si mesma. Gente que construiu uma carreira sem para ela ter aptidão, só para preencher lacunas afetivas. Gente que acumulou títulos e mais títulos, quando na verdade só desejava um amor para amar. Diante da frustração de não ser amado, muita gente reage assim. Refugia-se na vida intelectual, reveste-se de arrogância acadêmica e vive como se não tivesse um coração batendo dentro do peito. A carência afetiva é um território perigoso. Nele, muita gente desperdiça a própria existência.
Alfredo, reconheço e considero sua aptidão acadêmica, mas é provável que sua ânsia pelo reconhecimento também seja motivada por uma boa dose de carência afetiva. Nem sempre somos puros em nossas intenções, meu caro. Nem sempre a fonte de onde nasce nosso rio é pura. Mas não é problema reconhecer isso. Eu já me enganei muito em minhas buscas. Minha procura pela verdade filosófica nem sempre foi por ela mesma. Não ansiava a verdade pela verdade. O motivo que me movia era escuso. No fundo, no fundo eu ansiava era pela vaidade do reconhecimento. O que eu queria era a admiração, o afeto, o cortejo. Passava boa parte de meu tempo fazendo pesquisas que depois me rendessem temporários lustres no ego. Lamentável, não é mesmo?
A condição humana é marcada pela precariedade. Nem sempre norteamos nossas ações por valor nobre, elevado, altruísta. Vez em quando eu reconheço minhas ntenções intimamente conectadas ao contexto de minhas necessidades mais mesquinhas.
Alfredo, notei que seu estado de tristeza tem lhe proporcionado um despojamento inevitável. Mesmo as questões mais interessantes da Faculdade não estão onseguindo ocupar-lhe os pensamentos. Sua dor não lhe oferece muitas opções. Ela lhe conduz para um lugar único: o abandono de Clara. Isso não é de todo mal. Este estreitamento pode lhe favorecer um mergulho mais profundo em suas questões. Ao reconhecer-se só, você tem a possibilidade de olhar-se sem os subterfúgios de seus muitos planos. A realidade é crua. Não há nada que possa oferecer alento aos desatinos de sua alma. Este é o mistério da dor.
Meu caro Alfredo, que indigência dolorosa! Permita-me uma ironia respeitosa, mas o rei está nu. Sei o quanto isso é desconfortável. Já vivi muitas vezes essa nudez. Vez em quando a vida nos prega essa peça. Os recursos que até então cobriam e ofereciam abrigo à nossa fragilidade, de repente são cruelmente retirados. O ser fica desnudo. E os subterfúgios que usamos para esconder esta nudez, por um momento perdem a força, o sentido. Não é possível retirar o “ser” deste conflito. Tudo o que nos envolve, de alguma forma, define-nos. Recorda-se da antropologia filosófica de Ortega y Gasset? O filósofo espanhol dizia: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Veja bem, desde que entramos no mundo, o nosso “eu” já está nativamente aberto às circunstâncias que o envolvem. É na trama instável das circunstâncias históricas que o “eu” é nascido. Todos os limites que estão fora, de alguma forma, repercutem dentro de nós.
Alfredo, aproveite a nudez de seu ser para dar a ele o abrigo de que ele realmente necessita. O despojamento é importante para que observemos os excessos que antes não percebíamos. Há pesos que só percebemos depois que deles nos livramos. Por isso eu lhe sugiro a simplicidade. No momento da nudez, é mister que seu empenho seja focalizado. Não se disperse com as especulações filosóficas. Sua circunstância é simples. Há uma situação de abandono, e não há complexidade neste fato. Sua dor nasce justamente por identificar que a ausência de Clara revelou sua indigência. O moço que até então se ocupava de metas futuras e esperanças grandiosas por ora não tem disposição para acolher a luz do dia. É o momento da redução das possibilidades do ser.
Alfredo, a simplicidade dessa circunstância é uma chave para suas respostas. Mas, antes disso, permita-me alertá-lo para essa sede que tem de querer receber respostas para suas inquietações. Não tenha pressa nessa busca.
Retornando ao contexto da Literatura, eu diria que este livro ainda não pode ser publicado. Permita o tempo da maturação destas questões. Respostas apressadas são perigosas. Antes delas, queira as questões. Elas são muito interessantes. Ando acreditando que há mais sabedoria em saber lidar com as questões do que necessariamente saber respondê-las. Conviver com elas requer simplicidade.
 Meu caro Alfredo, tudo o que é belo tende a ser simples. Afirmação generalizante? Não sei. O que sei é que a beleza anda de braços dados com a simplicidade. Basta observar a lógica silenciosa que prevalece nos jardins. Vida que se ocupa de ser só o que é. Não há conflito nas bromélias, não há angústia nas rosas, nem ansiedade nos jasmins. Cumprem o destino de florirem ao seu tempo e de se despedirem do viço quando é chegada a hora. Não se prendem ao passageiro nem têm a pretensão de eternizar o que não nasceu para ser eterno. Não querem outra coisa senão a necessidade de cada instante. Não há desperdício de forças, nem há dispersão de energias. Tudo concorre para a realização do instante. De forma simples e original.
Não sei se há alguma novidade nisso que vou lhe dizer, mas não me importo em repetir essa verdade, afinal há sempre um jeito novo de escutar o que é velho. Simplicidade é um conceito que nos remete ao estado mais puro da realidade. Talvez seja por isso que as pessoas simples sejam mestras em alcançar a felicidade com poucos recursos. Elas fazem uma experiência direta da vida. Deixam-se afetar por tudo o que é vivo e não perdem tempo com complexidades que não alterarão a vida que precisa ser vivida.
Você tem uma afeição especial aos discursos sofisticados, às narrações rebuscadas e complexas. Isso é bom, mas nem sempre funciona na vida prática. O amor da sua vida foi levado por um vendedor de flores. Seu discurso inteligente, sua boa conversa não foram mais convincentes que uma rosa vermelha, ofertada em um fim de tarde, quando a vida era outono e os corações estavam desprevenidos.
Presumo que o vendedor não tenha dito muitas coisas. Apenas sorriu com simplicidade e entregou à Clara uma rosa recém-colhida. O seu banquete, o de Platão, as iguarias de suas ideias não representaram muita coisa diante da rosa vermelha. A vida é assim, meu caro Alfredo. Nem sempre acertamos no investimento. Por vezes ganhamos, por vezes perdemos. Mas não se preocupe. Perder é também uma forma de ganhar. É só olhar o avesso da derrota. Há ensinamentos que sobrevivem velados em locais estranhos. Vitória na derrota? Claro que há. É só modificar o jeito como olha para a realidade.
Veja bem, perder Clara representou para você uma grande vitória, só que você ainda não foi capaz de perceber isso. Clara, ao lhe deixar, ao lhe trocar por um vendedor de flores, entregou-lhe uma chave poderosa que abrirá lugares nunca  visitados do seu coração. A tristeza, meu caro Alfredo, esse sentimento estranho que nos desinstala tanto, pode ser uma verdadeira fonte de virtudes. Quando bem interpretado, o sofrimento se transforma num impulso fantástico para as superações que precisamos viver.
Toda perda sempre esconde um ganho. Essa frase é comum, já foi muitas vezes repetida, eu sei. Mas como é importante repetir essas coisas. Por isso volto a dizer, escute as mesmas coisas de sempre, mas de um jeito novo, diferente.
Um dia eu precisei amar minha dor. Era o único jeito que tinha de continuar vivendo. Ou aprendia, ou morreria com ela. Resolvi aprender. Desde então, minha dor é minha companheira, minha mestra, minha parceira. Deixou de ser minha inimiga no momento em que eu a olhei nos olhos e aceitei conhecê-la com mais propriedade. Quis entrar nos mistérios de seus mecanismos com o intuito de poder administrar melhor as suas consequências.
Eu não a busco, mas, quando chega, abro as portas para que não force as janelas. Deixo que entre, ofereço-lhe um café, olho nos seus olhos para que cesse o medo e depois me empenho em deixar que fique o tempo necessário, até que se dissolva por si só, pela força do tempo. Quando acolhida, a dor se dissipa aos poucos, e, de maneira incrível e surpreendente, o que parecia ser tão definitivo transforma-se em matéria transitória.
Pode parecer-lhe estranho, mas eu prefiro que ela se acomode na sala. Se eu não permito que ela entre, ela fica batendo na minha janela, dia e noite, impedindo-me o sono.
Eu poderia muito bem ter escolhido lidar com ela a partir de todo o instrumental filosófico que tenho à minha disposição. Foram anos e anos ensinando a milenar arte de arquitetar o  pensamento, mas descobri que não era o melhor caminho. Filosofar sobre a dor não ameniza o seu poder, ao passo que acolhê-la com simplicidade, isso sim faz sentido.
Você pode estar pensando que estou lhe sugerindo um absurdo. Como é que um homem afeito à reflexão pode viver sem filosofar sobre seus conflitos? Não estou dizendo que abro mão de refletir sobre meus dilemas, tampouco estou lhe propondo que o faça. Eu também busco casas para abrigar minha dor. Estou apenas sugerindo que se permita ser mortal. Retire as armaduras da arrogância acadêmica. Volto a dizer: o rei está nu. Nenhum argumento poderá livrá-lo desse desconcerto. Não se apresse em forjar as respostas para suas perguntas. Tenha paciência com suas circunstâncias.
É provável que Clara tenha descoberto no florista uma riqueza diferente da que havia descoberto em você. É, meu jovem amigo, a Filosofia é quase nada perto da sedução da simplicidade. Há mais encanto nos gestos, nas flores, que nas formulações elegantes que nossas palavras são capazes de produzir.
Desculpe-me pela ousadia, mas, muito mais que receber respostas para sua dor, do que você verdadeiramente precisa é aprender a perder. Eu sei que não é fácil, mas é um caminho que você não poderá evitar. Se quiser recomeçar a sua vida de um jeito certo, terá de reconhecer que a batalha está perdida.
Sem medo, tenha a coragem de se reconhecer perdedor. Não permita que esta derrota lhe retire a coragem de enfrentar novos desafios. A vida continua. Organize este luto. Há sepultamentos que são necessários para o prosseguimento da vida. Não prolongue no tempo o sofrimento. Não seja orgulhoso. Assuma a perda de forma criativa. A perda sofrida pode se transformar num ganho. É só permitir que dela você receba os ensinamentos. Semente que não aceita morrer não pode produzir frutos. É a regra vegetal a nos propor um jeito sábio de viver.
Diante desse sofrimento, há um jardim de ensinamentos que precisa ser cultivado. Desculpe-me falar tanto de jardins, jardineiros e floristas. Sei que isso aguça ainda mais a sua angústia. Não se preocupe, olhar de frente o nosso inimigo já é um recurso que nos ajuda a desvanecer sua força. Os fantasmas só deixam de nos assombrar no dia em que fixamos neles os nossos olhos. Os fantasmas sobrevivem é do nosso medo. Somos nós que os alimentamos.
Meu caro Alfredo, eu vou ficando por aqui. Agora quem pede uma resposta sou eu. Estou curioso para saber apenas uma coisa. Em algum momento, naqueles breves dias de convivência, você ofereceu flores à Clara?
Atenciosamente,
Abner








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