Obrigado por me responder tão prontamente. Não posso
acreditar que o homem que escreveu “As imposições da existência”, obra que
causou profundas mudanças em minha vida, tenha escrito um texto só para mim.
Estou realmente muito honrado. Também estou aliviado, pois, depois de
enviar-lhe a carta, fui tomado por um terrível arrependimento. A releitura me
fez identificar algumas infantilidades, fato que me deixou bastante
desconcertado.
Compreendo perfeitamente sua objeção em me enviar o novo
livro. Concordo. Trata-se de uma obra ainda não publicada. Ao ler suas
explicações, sentia ainda mais vergonha de minha carta. Confesso que ela não
passou por maturação alguma. Enviei-lhe tão logo estava terminada.
Prezado professor, a história que tenho para lhe contar é
muito simples. Tão simples que chego a ter receio de que possa lhe parecer
banal. Aliás, acho desconfortável demais encontrar as palavras que possam
narrar o que comigo ocorre. De qualquer forma, tentarei aproximar as palavras
do acontecimento, e deles fazer o casamento.
Tudo começou quando conheci Clara, a mulher mais bonita que
cruzou meus caminhos. Olhos verdes, cabelos negros e pele clara, ela parecia
uma personagem da literatura universal. Inteligente, sensível, Clara
conquistou-me tão logo eu a vi pela primeira vez. A luz que havia em seu nome
derramou pelos caminhos da minha alma. Uma imensa claridade me envolveu e me
arrebatou do tempo. Engraçado, mas foi a primeira vez que na vida pude esquecer
minha inadequação com o mundo. Pela primeira vez, uma realidade se sobrepôs à
importância do sonho de sair de meu lugar, de ser grande e de receber
titulações que me conferissem um prestígio internacional.
Nós nos conhecemos numa casualidade. Era manhã de outono.
Estávamos numa livraria e procurávamos pela mesma obra. Seguramos o livro no
mesmo instante. Nossas almas estavam distraídas. Foi amor à primeira vista.
A partir do livro que desejávamos, já iniciamos uma boa
conversa. Tínhamos informações diferentes sobre a mesma obra. Rimos e
discutimos a coincidência da procura. Não era um livro comum. De maneira rápida
e vigorosa, iniciamos os nossos encontros. É como se, cientes da brevidade da
vida, não quiséssemos perder tempo.
Almas órfãs quando se encontram não se submetem mais aos
malogros e sofrimentos das distâncias. Na primeira semana, tentei investigar
sua vida, mas ela ainda se mostrava reticente em contar-me sobre seu passado.
Ela sorria e dizia que o presente é o lugar do sentido, e com o tempo iria
apresentar-me sua história. Eu me revelei inteiro. Contei-lhe todos os meus segredos. Revelei-lhe
minhas aspirações e fiz questão de mostrar-lhe todas as minhas apetências
acadêmicas.
Já na segunda semana eu propus uma rotina de estudos. Achei
que poderíamos fazer crescer ainda mais nossas afinidades. Ocupei-me por
introduzi-la nos mistérios da Filosofia e o fiz com dedicada atenção. Lemos
juntos O banquete de Platão e chegamos a iniciar a lógica de Aristóteles. Mas
não tivemos tempo de ir além.
Numa daquelas poucas manhãs de outono, curto espaço de tempo
em que durou nossa história, recebi um bilhete deixado por ela comunicando-me
que não iríamos mais nos encontrar. Mais tarde, pude saber a razão do abandono.
A notícia me veio pelo professor Lamartine, de quem Clara dizia-se também
amiga. Segundo o professor, Clara havia partido com um vendedor de flores, um
moço qualquer de quem nem sequer sei o nome.
Eu não podia acreditar em tudo o que estava acontecendo. O
pouco tempo ao lado de Clara já me trouxera a certeza de que havíamos nascidos
um para o outro. Eu estava certo de que Clara era parte do destino final de
minhas procuras. Em Clara eu havia avançado quilômetros e quilômetros de minha
partida. E dela eu percebia o mesmo.
Professor Abner, esta é a razão do meu sofrimento. Desde que
Clara foi embora é como se as estruturas do meu mundo não existissem mais. O
amor que sinto por ela tem ruído minhas esperanças, meus sonhos. É por isso que
lhe escrevo. Por que o amor machuca tanto?
Desde muito cedo, escutava minha mãe dizer que só o amor é
capaz de dar jeito nas pessoas. Na sua maneira simples de compreender o sentido
das coisas, minha mãe sempre acreditou que o amor é o grande responsável pela
costura da vida. É ele que alinhava o sentido da existência, pois ele é a
grande riqueza que a condição humana herdou.
Prezado professor, como posso compreender que a minha maior
riqueza possa fragilizar-me tanto a ponto de me retirar a capacidade de ser
quem sou? Como posso compreender que a força que dizem ser capaz de reconstruir
todas as coisas possa estar destruindo a minha totalidade? Quando a gente ama,
é natural que a gente se desarmonize?
Confesso que neste momento da vida não consigo acreditar nos
ensinamentos de minha mãe. Há uma verdade superior, filosófica a respeito dessa
questão que possa me socorrer? Concordo plenamente com você. A reflexão nos
salva. Por isso lhe procuro. Quero resolver essa perda de maneira inteligente e
racional. Não faz sentido me desprender de meu sonho, prejudicar o meu projeto
de vida por causa de um sentimento tão destruidor.
Não sei se posso esperar sua resposta. Receio que considere
pueril demais o motivo que me assola. É provável que sua obra não esbarre
nestas mesquinharias, mas não lhe posso omitir que esse é o motivo de meu
sofrimento. Se achar que mereço sua atenção, ficarei honrado de me ocupar com
suas respostas.
Atenciosamente
Alfredo
Meu caro Alfredo,
A sua dor chegou por aqui. Adentrou minha casa. Veio no
resguardo protetor de um envelope pardo. Suas palavras cumpriram a função. Por
meio delas, pude perscrutar os territórios de seu coração tão machucado pelo
rejeito.
Alfredo, não é fácil estabelecer uma disputa com um florista.
Os especialistas em flores possuem os segredos dos jardins. Não queira viver
este embate. É certo que perderá. A Jardinagem é uma arte milenar, muito mais
antiga que a Filosofia. Há muita sabedoria escondida na ciência do semear,
cuidar e colher flores.
Meu caro, há uma diferença fundamental entre a Filosofia e a Jardinagem
que vale a pena ressaltar. A Filosofia é o lugar da complexidade. A Jardinagem
é o lugar da simplicidade. São territórios muito distintos. A Filosofia é o
campo das perguntas e respostas. O jardim é o campo onde a vida prevalece
misteriosa, mas ao mesmo tempo totalmente revelada. Por mais instigante que
seja o contexto da complexidade filosófica, vez em quando a gente se cansa
dele. O jardim é o lugar da contemplação, e a contemplação não é outra coisa
senão o descanso do pensamento. É por isso que vez em quando a alma grita pela
necessidade de silenciar-se. Grita pelo direito de cessar as perguntas, de
interromper, ainda que temporariamente, a produção de respostas.
O amor não seria isso, meu jovem Alfredo, o conforto da
contemplação mística que o outro nos desperta? Sei que não é fácil compreender
tudo isso. A contemplação não pertence aos territórios da inteligência.
Pertence aos da sabedoria. Eu também já perdi muito tempo correndo atrás de
perguntas e respostas. Hoje eu espero que elas me venham naturalmente. Descobri
que a contemplação minimiza as ansiedades que antes me roubavam a alegria.
Não seria mais sábio de sua parte, em vez de estabelecer o
combate, apreender a tática do inimigo?
Alfredo, respeito sua dor. Sei o quanto amar e ser amado é
aventura ardilosa. O amor é um aconchego desejado por todos nós. Quando o
encontramos, é natural que o queiramos para sempre. Mas nem tudo na vida
acontece em conformidade com nossos desejos. Por vezes a materialidade do
aconchego é desfeita, vai embora. E então sofremos com a ausência. É como se
uma ponte nos fosse retirada. O acesso terminou. A pessoa a quem amamos
oportuniza-nos chegar a lugares antes desconhecidos. Esta chegada a que me
refiro produz satisfação interior. Ela conforta as orfandades do nosso coração,
diminui nosso medo de ser só. Com isso as metas futuras não se sobrepõem ao momento presente.
Quando amamos e somos amados, o futuro é apenas um detalhe, porque o presente
torna-se imenso, determinante.
Não foi isso que fez Clara com você? Talvez, pela primeira
vez na vida, você tenha esquecido sua obsessão pelas metas futuras, pelo
sucesso que ainda habita o amanhã, pelo reconhecimento que você tanto espera
receber.
Por quê? É simples. Porque no tempo
em que Clara permaneceu ao seu lado, o presente prevaleceu. Ela preencheu suas
lacunas interiores com um amor que até então você ainda não havia
experimentado. É, meu caro, para quem tem no presente um amor a ser vivido, o
futuro é apenas um detalhe que pode esperar. Mas agora, ao provar o amargo de
sua ausência, a lacuna parece ainda maior. A tristeza que a perda provoca lhe
ausenta de si mesmo, e, com isso, tudo se dissolveu no ar. Antes de Clara
chegar, o seu tempo desejado era o futuro. Clara começou a lhe curar dos
exageros deste desejo. Fez-lhe olhar o presente com mais atenção. Bordou os
seus dias com detalhes simples, mas belos. Quebrou seu cotidiano antes tão
monótono, pondo nele um vigor que lhe era ausente. Mas ao ir embora, deixa-lhe
sem tempo algum. Sem ela, não há presente, tampouco futuro.
Alfredo, sua mãe está coberta de razão. Só o amor pode encher
a vida de sentido. É a partir dele que desvelamos nossa verdade fundamental. O
amor que damos e recebemos funciona como equilíbrio para nossos pés. Todos os
desdobramentos práticos de nossa vida dependem deste equilíbrio. A partida de
Clara lhe desequilibrou. Depois dela você compreendeu que só a Filosofia não
basta para lhe preencher o coração. O futuro e suas projeções perderam o
brilho. O peso do presente lhe amarra ao solo de sua realidade crua. O impasse
está estabelecido. Como voltar a sonhar o futuro? Como reorganizar os afetos?
Alfredo, isso que você sente é dor de amor. Aguda, eu sei,
mas profundamente fecunda. Nessa dor há uma infinidade de sementes esperando
pelo direito de nascer. Não impeça este nascimento.
Veja bem, a ausência de Clara pode lhe ajudar a clarificar
ainda mais as suas metas futuras. A dor que por ora lhe pesa pode lhe servir
como referencial para alguns questionamentos que considero válidos.
O reconhecimento que você tanto persegue é realmente
importante? Por que a presença de Clara lhe fez perder, ainda que
temporariamente, a obsessão pelo sucesso?
Alfredo, vale a pena investigar os seus motivos. Já vi muita
gente se perder em si mesma. Gente que construiu uma carreira sem para ela ter
aptidão, só para preencher lacunas afetivas. Gente que acumulou títulos e mais
títulos, quando na verdade só desejava um amor para amar. Diante da frustração
de não ser amado, muita gente reage assim. Refugia-se na vida intelectual,
reveste-se de arrogância acadêmica e vive como se não tivesse um coração
batendo dentro do peito. A carência afetiva é um território perigoso. Nele,
muita gente desperdiça a própria existência.
Alfredo, reconheço e considero sua aptidão acadêmica, mas é
provável que sua ânsia pelo reconhecimento também seja motivada por uma boa
dose de carência afetiva. Nem sempre somos puros em nossas intenções, meu caro.
Nem sempre a fonte de onde nasce nosso rio é pura. Mas não é problema
reconhecer isso. Eu já me enganei muito em minhas buscas. Minha procura pela
verdade filosófica nem sempre foi por ela mesma. Não ansiava a verdade pela
verdade. O motivo que me movia era escuso. No fundo, no fundo eu ansiava era
pela vaidade do reconhecimento. O que eu queria era a admiração, o afeto, o
cortejo. Passava boa parte de meu tempo fazendo pesquisas que depois me
rendessem temporários lustres no ego. Lamentável, não é mesmo?
A condição humana é marcada pela precariedade. Nem sempre
norteamos nossas ações por valor nobre, elevado, altruísta. Vez em quando eu
reconheço minhas ntenções intimamente conectadas ao contexto de minhas
necessidades mais mesquinhas.
Alfredo, notei que seu estado de tristeza tem lhe
proporcionado um despojamento inevitável. Mesmo as questões mais interessantes
da Faculdade não estão onseguindo ocupar-lhe os pensamentos. Sua dor não lhe
oferece muitas opções. Ela lhe conduz para um lugar único: o abandono de Clara.
Isso não é de todo mal. Este estreitamento pode lhe favorecer um mergulho mais
profundo em suas questões. Ao reconhecer-se só, você tem a possibilidade de
olhar-se sem os subterfúgios de seus muitos planos. A realidade é crua. Não há
nada que possa oferecer alento aos desatinos de sua alma. Este é o mistério da
dor.
Meu caro Alfredo, que indigência dolorosa! Permita-me uma
ironia respeitosa, mas o rei está nu. Sei o quanto isso é desconfortável. Já
vivi muitas vezes essa nudez. Vez em quando a vida nos prega essa peça. Os
recursos que até então cobriam e ofereciam abrigo à nossa fragilidade, de
repente são cruelmente retirados. O ser fica desnudo. E os subterfúgios que
usamos para esconder esta nudez, por um momento perdem a força, o sentido. Não
é possível retirar o “ser” deste conflito. Tudo o que nos envolve, de alguma
forma, define-nos. Recorda-se da antropologia filosófica de Ortega y Gasset? O
filósofo espanhol dizia: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Veja bem, desde
que entramos no mundo, o nosso “eu” já está nativamente aberto às
circunstâncias que o envolvem. É na trama instável das circunstâncias
históricas que o “eu” é nascido. Todos os limites que estão fora, de alguma
forma, repercutem dentro de nós.
Alfredo, aproveite a nudez de seu ser para dar a ele o abrigo
de que ele realmente necessita. O despojamento é importante para que observemos
os excessos que antes não percebíamos. Há pesos que só percebemos depois que deles
nos livramos. Por isso eu lhe sugiro a simplicidade. No momento da nudez, é mister
que seu empenho seja focalizado. Não se disperse com as especulações filosóficas.
Sua circunstância é simples. Há uma situação de abandono, e não há complexidade
neste fato. Sua dor nasce justamente por identificar que a ausência de Clara
revelou sua indigência. O moço que até então se ocupava de metas futuras e
esperanças grandiosas por ora não tem disposição para acolher a luz do dia. É o
momento da redução das possibilidades do ser.
Alfredo, a simplicidade dessa circunstância é uma chave para
suas respostas. Mas, antes disso, permita-me alertá-lo para essa sede que tem
de querer receber respostas para suas inquietações. Não tenha pressa nessa
busca.
Retornando ao contexto da Literatura, eu diria que este livro
ainda não pode ser publicado. Permita o tempo da maturação destas questões.
Respostas apressadas são perigosas. Antes delas, queira as questões. Elas são
muito interessantes. Ando acreditando que há mais sabedoria em saber lidar com
as questões do que necessariamente saber respondê-las. Conviver com elas requer
simplicidade.
Meu caro Alfredo, tudo
o que é belo tende a ser simples. Afirmação generalizante? Não sei. O que sei é
que a beleza anda de braços dados com a simplicidade. Basta observar a lógica
silenciosa que prevalece nos jardins. Vida que se ocupa de ser só o que é. Não
há conflito nas bromélias, não há angústia nas rosas, nem ansiedade nos
jasmins. Cumprem o destino de florirem ao seu tempo e de se despedirem do viço
quando é chegada a hora. Não se prendem ao passageiro nem têm a pretensão de
eternizar o que não nasceu para ser eterno. Não querem outra coisa senão a necessidade
de cada instante. Não há desperdício de forças, nem há dispersão de energias.
Tudo concorre para a realização do instante. De forma simples e original.
Não sei se há alguma novidade nisso que vou lhe dizer, mas
não me importo em repetir essa verdade, afinal há sempre um jeito novo de
escutar o que é velho. Simplicidade é um conceito que nos remete ao estado mais
puro da realidade. Talvez seja por isso que as pessoas simples sejam mestras em
alcançar a felicidade com poucos recursos. Elas fazem uma experiência direta da
vida. Deixam-se afetar por tudo o que é vivo e não perdem tempo com
complexidades que não alterarão a vida que precisa ser vivida.
Você tem uma afeição especial aos discursos sofisticados, às
narrações rebuscadas e complexas. Isso é bom, mas nem sempre funciona na vida
prática. O amor da sua vida foi levado por um vendedor de flores. Seu discurso
inteligente, sua boa conversa não foram mais convincentes que uma rosa
vermelha, ofertada em um fim de tarde, quando a vida era outono e os corações
estavam desprevenidos.
Presumo que o vendedor não tenha dito muitas coisas. Apenas
sorriu com simplicidade e entregou à Clara uma rosa recém-colhida. O seu
banquete, o de Platão, as iguarias de suas ideias não representaram muita coisa
diante da rosa vermelha. A vida é assim, meu caro Alfredo. Nem sempre acertamos
no investimento. Por vezes ganhamos, por vezes perdemos. Mas não se preocupe. Perder
é também uma forma de ganhar. É só olhar o avesso da derrota. Há ensinamentos
que sobrevivem velados em locais estranhos. Vitória na derrota? Claro que há. É
só modificar o jeito como olha para a realidade.
Veja bem, perder Clara representou para você uma grande
vitória, só que você ainda não foi capaz de perceber isso. Clara, ao lhe deixar,
ao lhe trocar por um vendedor de flores, entregou-lhe uma chave poderosa que
abrirá lugares nunca visitados do seu
coração. A tristeza, meu caro Alfredo, esse sentimento estranho que nos
desinstala tanto, pode ser uma verdadeira fonte de virtudes. Quando bem interpretado,
o sofrimento se transforma num impulso fantástico para as superações que
precisamos viver.
Toda perda sempre esconde um ganho. Essa frase é comum, já
foi muitas vezes repetida, eu sei. Mas como é importante repetir essas coisas.
Por isso volto a dizer, escute as mesmas coisas de sempre, mas de um jeito
novo, diferente.
Um dia eu precisei amar minha dor. Era o único jeito que
tinha de continuar vivendo. Ou aprendia, ou morreria com ela. Resolvi aprender.
Desde então, minha dor é minha companheira, minha mestra, minha parceira.
Deixou de ser minha inimiga no momento em que eu a olhei nos olhos e aceitei
conhecê-la com mais propriedade. Quis entrar nos mistérios de seus mecanismos
com o intuito de poder administrar melhor as suas consequências.
Eu não a busco, mas, quando chega, abro as portas para que
não force as janelas. Deixo que entre, ofereço-lhe um café, olho nos seus olhos
para que cesse o medo e depois me empenho em deixar que fique o tempo
necessário, até que se dissolva por si só, pela força do tempo. Quando
acolhida, a dor se dissipa aos poucos, e, de maneira incrível e surpreendente,
o que parecia ser tão definitivo transforma-se em matéria transitória.
Pode parecer-lhe estranho, mas eu prefiro que ela se acomode
na sala. Se eu não permito que ela entre, ela fica batendo na minha janela, dia
e noite, impedindo-me o sono.
Eu poderia muito bem ter escolhido lidar com ela a partir de
todo o instrumental filosófico que tenho à minha disposição. Foram anos e anos
ensinando a milenar arte de arquitetar o pensamento, mas descobri que não era o melhor
caminho. Filosofar sobre a dor não ameniza o seu poder, ao passo que acolhê-la
com simplicidade, isso sim faz sentido.
Você pode estar pensando que estou lhe sugerindo um absurdo.
Como é que um homem afeito à reflexão pode viver sem filosofar sobre seus
conflitos? Não estou dizendo que abro mão de refletir sobre meus dilemas,
tampouco estou lhe propondo que o faça. Eu também busco casas para abrigar
minha dor. Estou apenas sugerindo que se permita ser mortal. Retire as
armaduras da arrogância acadêmica. Volto a dizer: o rei está nu. Nenhum
argumento poderá livrá-lo desse desconcerto. Não se apresse em forjar as
respostas para suas perguntas. Tenha paciência com suas circunstâncias.
É provável que Clara tenha descoberto no florista uma riqueza
diferente da que havia descoberto em você. É, meu jovem amigo, a Filosofia é
quase nada perto da sedução da simplicidade. Há mais encanto nos gestos, nas
flores, que nas formulações elegantes que nossas palavras são capazes de
produzir.
Desculpe-me pela ousadia, mas, muito mais que receber
respostas para sua dor, do que você verdadeiramente precisa é aprender a
perder. Eu sei que não é fácil, mas é um caminho que você não poderá evitar. Se
quiser recomeçar a sua vida de um jeito certo, terá de reconhecer que a batalha
está perdida.
Sem medo, tenha a coragem de se reconhecer perdedor. Não
permita que esta derrota lhe retire a coragem de enfrentar novos desafios. A
vida continua. Organize este luto. Há sepultamentos que são necessários para o
prosseguimento da vida. Não prolongue no tempo o sofrimento. Não seja
orgulhoso. Assuma a perda de forma criativa. A perda sofrida pode se
transformar num ganho. É só permitir que dela você receba os ensinamentos. Semente
que não aceita morrer não pode produzir frutos. É a regra vegetal a nos propor
um jeito sábio de viver.
Diante desse sofrimento, há um jardim de ensinamentos que
precisa ser cultivado. Desculpe-me falar tanto de jardins, jardineiros e
floristas. Sei que isso aguça ainda mais a sua angústia. Não se preocupe, olhar
de frente o nosso inimigo já é um recurso que nos ajuda a desvanecer sua força.
Os fantasmas só deixam de nos assombrar no dia em que fixamos neles os nossos
olhos. Os fantasmas sobrevivem é do nosso medo. Somos nós que os alimentamos.
Meu caro Alfredo, eu vou ficando por aqui. Agora quem pede
uma resposta sou eu. Estou curioso para saber apenas uma coisa. Em algum
momento, naqueles breves dias de convivência, você ofereceu flores à Clara?
Atenciosamente,
Abner
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