sábado, 3 de fevereiro de 2018

TEMPO DE ESPERAS, O LIVRO (ÚLTIMO DIA)









TRÊS CARTAS - AS ÚLTIMAS
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO
CARTAS: VINTE E NOVE, TRINTA E TRINTA E UM


Querido Abner, 

Obrigado pela confissão. Gostei de saber que você também precisou se desprender de seus pesos. A dor é universal. Só muda de endereço.
Também tenho me aventurado na busca pela leveza. Instigante a sua reflexão. A ilusão de que possuímos pessoas e coisas é um fardo terrível que carregamos sobre os ombros. Mas como é difícil perder esta ilusão, querido Abner. É a partir dela que estabelecemos a segurança de que necessitamos para viver. Um erro fundamental. Essa leveza de que você hoje desfruta leva  tempo para ser alcançada. Muitos morrerão sem ao menos saber que ela é possível.
Não deveria ser essa a função das religiões no mundo? Ensinar a leveza? Propor caminhos alternativos que pudessem ajudar a humanidade a viver sem o peso das escravidões?
Confesso que eu ainda não sei crer como minha mãe crê, mas sinto que já dei passos importantes na direção de Deus. Recordo-me da maneira terna com que ela me falava de Dele. Mas a fala de minha mãe era muito baixa perto dos gritos que ouvi ao longo da vida. Sinto que ainda preciso reconstruir muita coisa dentro de mim. Tenho muitos estragos dentro do meu coração. Fui vítima de uma teologia que me apresentou Deus como um tirano implacável. Aquele Deus aterrorizante eu nunca quis ao meu lado. Preferi seguir sozinho.
Talvez seja por isso que eu tenha sofrido tanto com o abandono de Clara. Cresci sob a sombra do medo. A tirania divina não nos educa para a coragem, mas para o medo. E diante desse medo há duas formas de reagir. Ou nos transformamos em seres apáticos, ou nos transformamos em seres arrogantes. Eu sou exemplo vivo da segunda opção.
A arrogância não me permitiu encarar as perdas da vida. A minha fragilidade estava coberta de cera, numa tentativa de camuflar inseguranças que possuo. A vida me distanciou de minha mãe, de meu pai. Repudiei tudo o que fazia parte daquele mundo simples em que fui criado. Busquei nos estudos uma forma de diminuir o medo que sentia.
Hoje eu posso ver tudo de um jeito mais claro. Feliz a hora em que resolvi lhe procurar, meu querido amigo. Feliz a hora em que eu decidi lançar sobre a terra as mazelas do meu coração.
Ao iniciar o plantio de meu jardim, eu tive a oportunidade de reencontrar-me com o rosto de um Deus misericordioso. O mesmo a quem minha mãe me apresentou, mas que a vida me fez repudiar e esquecer.
Obrigado por misturar a palavra santa na terra de minha casa. Foi no meio de sementes, estercos, terras e alegrias que Deus resolveu florescer em minha história.
Hoje Ele está aqui e fala comigo. Vive correndo e brincando pelo meu jardim.
Religiosamente,

Alfredo


Meu caro Alfredo,

Sua carta me fez chorar. Rogo a Deus para que esta brincadeira em seu jardim nunca mais tenha fim. Deus gosta de se entreter com a gente. Esteja sempre com Ele.
A nova estação também tem sido bonita por aqui, neste lugar onde os poemas estão escritos por todos os lados. Fiz o mesmo que você. Esparramei frases bonitas entre as plantas de meus canteiros.
Meu querido filho, é chegada a hora da verdade. Confesso que não tenho sido totalmente honesto com você. Ando omitindo alguns fatos que hoje resolvi lhe confessar. É que nem sempre as pessoas estão preparadas para a verdade, mas eu considero que você já esteja pronto para conhecê-la.
Pois bem. Primeiramente preciso lhe dizer que o amo profundamente. Aprendi a amar. O garoto arrogante das primeiras cartas foi dando lugar a um rapaz maduro e cheio de sabedoria, o qual com sutileza e mestria conquistou meu coração de pai.
Estamos muito unidos, meu caro Alfredo, e essa união não teve início com suas cartas. Eu já tinha entrado bem antes em sua vida, mas sem que você o soubesse. Eu fui o responsável por Clara ter lhe abandonado. Ela, ao trocar-lhe por um florista, estava obedecendo a mim. Fui eu quem pediu que Clara se afastasse de você.
Sei que você deve estar assustado, mas já me explico. As razões são simples, meu caro Alfredo. Nenhum pai quer ver sua filha casada com um homem inteligente demais, mas sábio de menos.
Inteligência não é o combustível para o amor eterno. O que faz o amor durar no tempo não é o que sabemos sobre o outro, mas é o mistério que nos aproxima. Sobre este mistério não sabemos, mas intuímos. E pelo que tenho percebido da vida, a intuição é atributo que aos sábios pertence. Ser inteligente não é garantia de boa paternidade, por exemplo. Já a sabedoria, sim. Um pai sábio fará muito mais bem ao filho que o pai meramente inteligente.
Eu já conhecia sua fama de aluno excepcional, brilhante. Tenho amigos que lhe ensinaram na Faculdade. Sabia de seu empenho e de sua dedicação à Filosofia. Busquei conhecê-lo bem por uma razão muito simples. Clara é minha filha.
Quando ela falou-me de você, percebi que havia um interesse mais que o comum. Clara estava encantada. Havia em seus olhos uma certeza de que você seria o homem da vida dela. Havia uma ansiedade, um desejo de acelerar o tempo para que muito em breve ela viesse a ser sua esposa. Diante daquele interesse tão intenso e do curto período que vocês se conheciam, resolvi perguntar a ela se você estava pronto para a experiência do amor, e foi então que Clara contou-me dos medos que tinha.
Disse que o admirava muito. Ressaltou seu conhecimento, seu raciocínio sempre brilhante, mas confessou-me com desconserto que por vezes ela percebia sua incapacidade de apreciar as coisas simples.
Veja bem, meu caro amigo, Clara é afeita à simplicidade. Herdou de sua mãe um jeito profundo de olhar a vida. Um olhar raro, demorado, sempre.
Clara possui uma inteligência brilhante, mas descobriu desde muito cedo o amor pelas coisas simples. Com a morte da mãe, tornou-se responsável pela casa. Foi então que resolvemos ficar por aqui. Estando já aposentado como professor na Universidade, pude recolher-me neste meu canto para dedicar-me totalmente à arte da Jardinagem. Como já lhe disse, foi um jeito que encontrei de fazer permanecer entre nós a presença de Flora.
Clara ficou comigo por um tempo, mas eu a motivei a estudar Artes em Paris, e assim o foi. Clara o conheceu por ocasião de suas férias. Sei que ela não teve nem oportunidade de lhe contar tudo isso, pois ela estava bastante indecisa se voltaria a Paris para continuar os estudos.
Tudo aconteceu muito rapidamente dentro dela. Contou-me do encontro casual com você na livraria. Falou-me do livro que vocês pegaram juntos e de sua gentileza em permitir que ela ficasse com o único volume disponível.
Achei muito interessante a semelhança dos encontros. Entre mim e Flora, e entre você e Clara. Ela me contou do café que se seguiu, das conversas e das características do seu olhar que tanto a fascinaram.
Eu acompanhei os encontros. Sempre que chegava, corria ao meu encontro para relatar. Depois de duas semanas, numa tarde que já era prenúncio do inverno que chegaria, numa tarde de outono em processo de agonia, Clara confessou-me os desencantos com você. Contou-me que chegou à conclusão de que o homem que ela viu no início dos encontros não existia. Era apenas uma projeção que havia feito. Um homem imaginado, não real.
Disse-me que você insistia demais em encontrar respostas para todos os problemas do mundo, e que isso a assustava muito. Ela percebeu que existia uma diferença abismal no jeito que vocês interpretavam a vida. Clara não foi educada para as respostas, meu caro, mas para as perguntas. Você se mostrou muito cheio de respostas, e isso a assustou.
Ela percebeu que ao seu lado ela estava se sentindo uma mocinha boba, sem atrativos, quase um objeto que você resolveu investigar. Clara confessou-me que sempre sonhou com um homem como você, mas que existia uma insensibilidade muito aflorada que ela julgava ser determinante para que não acreditasse na relação de vocês. Clara o imaginou, e reconheceu ter errado no que havia imaginado.
Conversamos demoradamente naquela noite. Clara chegou à conclusão de que você era um homem prático demais para ser transformado em marido.
Ela não queria arriscar o destino de sua vida ao lado de um homem que não sabia apreciar as estrelas sem a necessidade de ficar repetindo as regras que as faziam  brilhar. Clara ficou muito assustada com seu muito dizer, com seu muito explicar. Foi então que eu sugeri a ela que não continuasse a se encontrar com você.
Ela já estava envolvida demais para continuar estabelecendo vínculos com alguém que ela julgava tão impróprio para ela.
O tempo de férias acabou e Clara voltou a Paris. Eu inventei a história do vendedor de flores porque eu já tinha um plano em minha cabeça. Eu mesmo escrevi aquele bilhete, dizendo-lhe sobre sua partida. Sei muito bem imitar a letra de minha filha.
Eu tinha os meus motivos para fazer tudo aquilo. Sabia que Clara não lhe esqueceria. Eu vi a tristeza profunda nos seus olhos no dia em que ela resolveu lhe deixar, e por isso decidi fazer alguma coisa para tentar ajudar.
Sempre que falava com ela, procurava saber notícias de seu coração de mulher. O amor permanecia, mas em nenhum momento Clara perdia a convicção de que havia feito a coisa certa.
Depois de alguns meses da ida de Clara, e diante da certeza de que ela realmente o amava, resolvi pedir ao meu amigo da Universidade que lhe convencesse a um contato comigo. Sabia muito bem que Lamartine, o professor, tinha acesso direto a você. Clara me contara que era ele o grande orientador de suas pesquisas. Insisti muito com Lamartine que ele mantivesse o segredo. Gostaria de saber ao certo o que havia acontecido para que Clara lhe dispensasse, mesmo sofrendo. Foi então que inventei a história dos manuscritos. Sabia que você se interessaria em ter a oportunidade de lê-los em primeira mão.
Fiquei muito feliz ao perceber que o plano havia dado certo, meu caro amigo. Sua primeira carta trouxe-me muita euforia, pois temia que não aceitasse dividir o sofrimento de seu coração. Lamartine comentou comigo que você não conversou quase nada com ele, mas com um pouco de tato ele acabou lhe arrancando algumas confissões.
Foi bonito perceber seu coração por ele mesmo, sem notícia dada por outros. Ouvir sua honestidade, seu sofrimento tão à flor da pele, e seu questionamento a respeito de tantas coisas.
E assim passou o tempo. Clara nunca soube do que eu andava fazendo. Sempre que falava com ela, eu insistia para saber notícias de seu coração desiludido. Temia que ela se ocupasse de outro, que conhecesse alguém que lhe desviasse do sofrimento que estava vivenciando.
Eu tinha certeza de que Clara também estava crescendo com aquela renúncia. Ouvi sempre a mesma resposta: “Pai, eu ainda vou procurar Alfredo!”. Por isso insisti tanto no plantio de seu jardim. Queria ajudar minha filha a encontrar o homem que ela intuiu existir dentro de você, meu querido.
Clara o imaginou, mas sei que o que ela idealizou poderia realmente existir, e que era apenas uma questão de tempo. Intuí que sua insensibilidade poderia ser vencida com o cultivo de hábitos simples, menores.
É, meu caro amigo, acho que deu certo. Hoje, distante do tempo em que foi escrita a primeira carta, sinto que o homem que Clara havia intuído já existe. Ela não estava errada na primeira impressão. Ela não imaginou nada. Ela viu, mas existia alguns excessos que dificultavam sua chegada ao lugar que fora visto.
Sinto que ajudei a preparar o homem com quem minha filha certamente se casará. Fico feliz por saber que o milagre do jardim explodiu no seu coração da mesma forma que a semente explode na terra. Um novo homem nasceu pela força das regras das flores.
Meu querido Alfredo, eu recebi no último mês uma carta de Clara. Ela chegará na próxima semana. Ela o procurará. Disse que precisa lhe encontrar, ainda que seja para chegar à conclusão de que vocês não poderão ficar juntos. Clara não sabe de nossos contatos. Não sabe da história de seu jardim, e peço-lhe que não conte a ela sobre nada do que aconteceu, meu filho.
Estou vivendo os últimos dias de minha vida. Tenho o mesmo câncer que matou minha esposa, mas estou sendo tratado aqui mesmo, em minha casa. O médico já me alertou sobre minha situação e disse que não tenho muitos dias pela frente. Estou saboreando os momentos finais de minha Jardinagem, mas estou feliz. Não há agonia nesta minha despedida. A cada suspiro, eu agradeço a Deus por eu existir e ser quem eu sou. Morrerei reconciliado comigo mesmo, e nisso está minha alegria.
Clara está sofrendo muito com minha partida. Ela sabe de meu estado. Só agora permiti que ela viesse. Quis ganhar tempo com sua Jardinagem. Temia que ela viesse e ainda encontrasse o rapazinho tolo, fascinado por Aristóteles e os banquetes de Platão, e que, desiludida, pudesse concluir que você realmente não é o homem com quem ela deseja passar o resto dos seus dias.
Meu filho, estou muito feliz por saber que você receberá Clara de volta em sua vida. Fico feliz por saber que você agora possui um jardim, e que nele você descobriu um lugar de contemplação. Clara ficará surpresa. Você é um moço muito inteligente, mas também se revelou muito sábio. Sabedoria e inteligência, quando juntas, são virtudes que transformam o mundo.
Perdoe-me por ter planejado esta trama. Quis apenas fazer o bem. Não acho que eu tenha errado. Vejo-o mais feliz, e isso é o bastante para que eu me exima da culpa de ter mentido para você.
Fique sabendo que de tudo o que deixo neste mundo há dois valores inestimáveis que gostaria de lhe confiar. Clara e o meu jardim. Eles foram criados com as mesmas regras. Amei cada movimento que fiz em direção a eles. Eles serão seus. Cuide deles por mim.
Agora você já sabe. Clara é o raio de sol que irá lhe visitar...
Preciso ainda dizer. Você foi um plantio profundamente realizador que pude fazer nesta vida. Só uma coisa eu lamento. Morrerei sem conhecer o seu rosto.
Com amor e carinho, despeço-me. Definitivamente.

Abner


Meu caro Abner,

Sei que seus olhos não poderão mais ler estas palavras. Não importa. Meu desejo é simples, e hoje ele é tudo o que possuo.
Não tenho como remeter-lhe minhas últimas palavras. Esbarro no limite do tempo, que soberano e contínuo define os acontecimentos e a eles nos condiciona.
Eu escrevo porque andei guardando durante muito tempo este punhado de palavras, e hoje reconheço que já não tenho mais como segurá-las dentro de mim.
São palavras demoradas porque elas estão aqui desde a notícia de sua morte. Já que não tenho correio que possa entregá-las a você, resolvi sepultá-las num pequeno espaço que cavei no seu jardim. Que ele lhe conte minhas notícias.
Quando sua última carta chegou, eu não estava na cidade. Naquela época eu havia demorado alguns dias numa pequena viagem que resolvi fazer com minha mãe. Quando cheguei, fui surpreendido pela sua carta e, logo em seguida, pelo recado que meu pai me dera, de que Clara havia procurado por mim.
Conhecedor de toda a história, eu tomei a liberdade de ir procurar por Clara em sua casa. Quando cheguei, ela estava sentada na escada da entrada principal. Parecia mergulhada numa tristeza que é própria de quem perdeu o sentido de tudo. Encorajado pelas suas palavras, e por tudo o que você me proporcionou saber, aproximei-me sem muito alarde.
Quando ela percebeu minha presença, notei que seus olhos se iluminaram com a mesma luz que marcou nosso primeiro encontro. Eu fui pleno naquele instante. Olhei Clara sem pressa. Olhei Clara de um jeito que eu nunca tinha olhado antes. Ela estava ainda mais bonita!
Não houve demoras, nem formalidades. Abraçou-me com o mesmo carinho de sempre e disse que eu era tudo o que ela tinha na vida! Naquele momento eu me recordei da herança que você me deixara: Clara e seu jardim. E movido pelo aprendizado que meu jardim me  concedera, eu assegurei à Clara que eu não a abandonaria por nada neste mundo. E assim o foi.
Finalmente pude entrar no seu espaço. Conheci sua casa, seu jardim, sua escrivaninha, seus livros e o velho Argus, o seu amor inútil.
Adentrei o seu espaço da mesma forma que o sacerdote adentra o seu templo. Minha alma em profunda reverência se pôs a conhecer aquilo que suas palavras me descreviam. Pude olhar nos olhos de Argus e nele encontrei uma docilidade que me encantou profundamente. Percebi em cada pequeno espaço de sua morada a força de sua presença.
Confesso que não pude conter as lágrimas quando percebi que as frases que você havia escrito entre os canteiros do seu jardim eram frases retiradas de minhas cartas. Não pude segurar a emoção. Clara não entendeu o meu sofrimento, mas eu cumpri o nosso plano. Ela nunca soube de nada.
Hoje, passados vinte anos de sua morte, resolvi escrever a última carta de nossa frutuosa correspondência. Movido por um desejo de ressurreição, quis rabiscar neste papel as palavras que há tanto tempo estão engasgadas em minha garganta.
Você não errou em sua análise. Clara e eu nascemos um para o outro. Minha mudança foi fundamental para que eu pudesse oferecer-lhe o que ela havia enxergado em mim, mas que por força de minhas limitações eu não deixava florescer.
Nosso namoro durou um ano e dois meses. Continuei meus estudos e hoje ocupo a mesma cadeira que você ocupou durante tanto tempo na Universidade. Clara terminou o curso de Artes em Paris e abriu uma floricultura que tem fama em toda a região pela qualidade do serviço oferecido. Nas horas de folga, ela ensina pintura na Escola de Artes que abriu e que agora é comandada por Maria Flor, nossa filha mais jovem.
Trouxemos três filhos ao mundo. Abner, o mais velho, desde os primeiros anos de escola já manifestou forte inclinação à Filosofia. Carolina, a filha do meio, desafia-me o tempo todo com seu raciocínio lógico e pouco sábio. Creio que não terei outro caminho senão obrigá-la a plantar um jardim! Maria Flor é uma criatura rara. Sinto que ela tem a mesma alma que Clara.
Somos felizes. Preciso dizer-lhe que você é uma lembrança constante em nossa vida. Em tudo lhe recordamos. Clara se inquietou muito no início de como eu poderia saber tanto de você. Desviei-me como pude, mas cumpri o seu desejo de que ela nunca viesse a saber de nossa correspondência.
Não demorei muito para encontrar o lugar em que você armazenou as correspondências que lhe enviei. Todas elas, minhas e suas, estão guardadas numa mesma maleta que mantenho sob sete chaves. Tenho o hábito de uma vez por ano recolher-me num canto da casa e reler todo o processo de nossa amizade.
Confesso que vejo na correspondência o roteiro do meu crescimento. Hoje, distante daquelas primeiras palavras, tão marcadas pelo sentimento de perda e desolação, tão marcadas pela imaturidade que é própria de quem não enxerga a vida pelos olhos da simplicidade, quero realizar este gesto final, e que para mim tem valor sacramental. Quero selar nossa correspondência com esta carta de agradecimento.
Obrigado por ter me retirado do mundo das perguntas absurdas e inférteis. Obrigado por ter posto em mim o desejo de sair das margens convencionais da razão e adentrar os controversos e belos caminhos da sabedoria.
Obrigado por filiar-me ao seu coração de pai, assumindo-me como filho rebelde que merece carinho para aprender a lição necessária. Obrigado por ter olhado sem pressa para a pintura da minha vida e nela ter reconhecido traços que mereciam mais técnica.
Obrigado por ter visto os jardins escondidos na minha alma, e por tê-los feito florir pela força de um plantio na terra da realidade.
Obrigado por me revelar a sabedoria que reside na arte da Jardinagem e por ter me ensinado que Deus costuma Se esconder nos jardins. Obrigado por ter-me feito aventurar no mistério das sementes que aceitam a morte para que nasça a beleza que delas provém.
Obrigado por ter-me preparado Clara. Alma rara neste mundo tão marcado pelas almas mancas, raquíticas. Ela, com seu jeito simples de ser mulher, vive me arrancando de minhas posturas mesquinhas e visões de superfície.
Obrigado pela herança. Herança humana, herança filosófica, herança espiritual. Mesmo sem nunca ter sido visto pelos seus olhos, mas totalmente enxergado pelo seu coração, você fez a minha história ser diferente.
Eu continuo por aqui, meu pai querido. Clarificado pelas riquezas que já foram suas e que agora são minhas.
Quando tudo parecia irremediavelmente perdido em minha vida, eu fui encontrado por você. De forma surpreendente, você resolveu me querer bem.
Chorou e sorriu comigo. Semeou-me de sonhos e esperanças de um futuro bom. Direcionou os meus olhos para um lugar mais alto, mais bonito e me convenceu a construir um jardim à frente de minha casa, mas que também ramificou e floresceu nos territórios de minha alma. Um jardim onde eu aprendi a mística das esperas. Lugar onde a vida me recriou, como se um movimento materno me reconduzisse ao ventre, tecendo-me de novo, lapidando-me, livrando-me dos excessos. Um lugar onde vivi o itinerário do meu florescimento humano. Um jardim onde eu pude recomeçar.
Florido de alegrias, por aqui permaneço.
Sempre grato, seu filho, pai de seus netos.
                                        
                                               Alfredo 


FIM

2 comentários:

  1. Acabando agora de ler as últimas cartas,com lágrimas nos olhos, tenho o mesmo sentimento de gratidão que Alfredo teve com Abner. Quanta generosidade Eneida teve em compartilhar este livro com os leitores do seu blog de forma tão atual e prática! Eneida é luz para mim e tenho certeza que para muitos! Emocionei-me demais com este final surpreendente. Que Deus continue te abençoando e te guiando neste nobre propósito de polenizar poesia e sabedoria nos jardins espirituais ao redor do mundo! Com admiração e respeito, Elaine.

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  2. Amiga Elaine. Você é uma pessoa pra lá de especial. De uma sensibilidade e altruísmo que encantam. Igual a você, gratidão, para mim, é palavra de ordem ditada pelo coração. Obrigada pelo incentivo. Muito me estimula. Sim, esse livro tem espaço cativo na minha leitura. Releio sempre e sempre me atualizo. O final é muito extra mesmo. O detalhe é que você tem que necessariamente seguir a sequência do livro, tanto pelos aprendizados, tanto para se surpreender com o final...rssrr
    P.S. Amei o termo"polenizar". É ou não um luxo transportar coisas boas? kkkkkkkkkk. Obrigada por acessar o blog. Muitos beijos no seu coração!

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