TRÊS CARTAS - AS ÚLTIMAS
TEMPO DE ESPERAS - O LIVRO
CARTAS: VINTE E NOVE, TRINTA E TRINTA E UM
Querido Abner,
Obrigado pela confissão. Gostei de saber que você também
precisou se desprender de seus pesos. A dor é universal. Só muda de endereço.
Também tenho me aventurado na busca pela leveza. Instigante a
sua reflexão. A ilusão de que possuímos pessoas e coisas é um fardo terrível
que carregamos sobre os ombros. Mas como é difícil perder esta ilusão, querido
Abner. É a partir dela que estabelecemos a segurança de que necessitamos para
viver. Um erro fundamental. Essa leveza de que você hoje desfruta leva tempo para ser alcançada. Muitos morrerão sem
ao menos saber que ela é possível.
Não deveria ser essa a função das religiões no mundo? Ensinar
a leveza? Propor caminhos alternativos que pudessem ajudar a humanidade a viver
sem o peso das escravidões?
Confesso que eu ainda não sei crer como minha mãe crê, mas
sinto que já dei passos importantes na direção de Deus. Recordo-me da maneira
terna com que ela me falava de Dele. Mas a fala de minha mãe era muito baixa
perto dos gritos que ouvi ao longo da vida. Sinto que ainda preciso reconstruir
muita coisa dentro de mim. Tenho muitos estragos dentro do meu coração. Fui
vítima de uma teologia que me apresentou Deus como um tirano implacável. Aquele
Deus aterrorizante eu nunca quis ao meu lado. Preferi seguir sozinho.
Talvez seja por isso que eu tenha sofrido tanto com o
abandono de Clara. Cresci sob a sombra do medo. A tirania divina não nos educa
para a coragem, mas para o medo. E diante desse medo há duas formas de reagir.
Ou nos transformamos em seres apáticos, ou nos transformamos em seres
arrogantes. Eu sou exemplo vivo da segunda opção.
A arrogância não me permitiu encarar as perdas da vida. A
minha fragilidade estava coberta de cera, numa tentativa de camuflar
inseguranças que possuo. A vida me distanciou de minha mãe, de meu pai.
Repudiei tudo o que fazia parte daquele mundo simples em que fui criado.
Busquei nos estudos uma forma de diminuir o medo que sentia.
Hoje eu posso ver tudo de um jeito mais claro. Feliz a hora
em que resolvi lhe procurar, meu querido amigo. Feliz a hora em que eu decidi
lançar sobre a terra as mazelas do meu coração.
Ao iniciar o plantio de meu jardim, eu tive a oportunidade de
reencontrar-me com o rosto de um Deus misericordioso. O mesmo a quem minha mãe
me apresentou, mas que a vida me fez repudiar e esquecer.
Obrigado por misturar a palavra santa na terra de minha casa.
Foi no meio de sementes, estercos, terras e alegrias que Deus resolveu
florescer em minha história.
Hoje Ele está aqui e fala comigo. Vive correndo e brincando
pelo meu jardim.
Religiosamente,
Alfredo
Meu caro Alfredo,
Sua carta me fez chorar. Rogo a Deus para que esta brincadeira
em seu jardim nunca mais tenha fim. Deus gosta de se entreter com a gente.
Esteja sempre com Ele.
A nova estação também tem sido bonita por aqui, neste lugar
onde os poemas estão escritos por todos os lados. Fiz o mesmo que você.
Esparramei frases bonitas entre as plantas de meus canteiros.
Meu querido filho, é chegada a hora da verdade. Confesso que
não tenho sido totalmente honesto com você. Ando omitindo alguns fatos que hoje
resolvi lhe confessar. É que nem sempre as pessoas estão preparadas para a
verdade, mas eu considero que você já esteja pronto para conhecê-la.
Pois bem. Primeiramente preciso lhe dizer que o amo
profundamente. Aprendi a amar. O garoto arrogante das primeiras cartas foi
dando lugar a um rapaz maduro e cheio de sabedoria, o qual com sutileza e
mestria conquistou meu coração de pai.
Estamos muito unidos, meu caro Alfredo, e essa união não teve
início com suas cartas. Eu já tinha entrado bem antes em sua vida, mas sem que
você o soubesse. Eu fui o responsável por Clara ter lhe abandonado. Ela, ao
trocar-lhe por um florista, estava obedecendo a mim. Fui eu quem pediu que
Clara se afastasse de você.
Sei que você deve estar assustado, mas já me explico. As
razões são simples, meu caro Alfredo. Nenhum pai quer ver sua filha casada com
um homem inteligente demais, mas sábio de menos.
Inteligência não é o combustível para o amor eterno. O que
faz o amor durar no tempo não é o que sabemos sobre o outro, mas é o mistério
que nos aproxima. Sobre este mistério não sabemos, mas intuímos. E pelo que
tenho percebido da vida, a intuição é atributo que aos sábios pertence. Ser
inteligente não é garantia de boa paternidade, por exemplo. Já a sabedoria,
sim. Um pai sábio fará muito mais bem ao filho que o pai meramente inteligente.
Eu já conhecia sua fama de aluno excepcional, brilhante.
Tenho amigos que lhe ensinaram na Faculdade. Sabia de seu empenho e de sua
dedicação à Filosofia. Busquei conhecê-lo bem por uma razão muito simples.
Clara é minha filha.
Quando ela falou-me de você, percebi que havia um interesse
mais que o comum. Clara estava encantada. Havia em seus olhos uma certeza de
que você seria o homem da vida dela. Havia uma ansiedade, um desejo de acelerar
o tempo para que muito em breve ela viesse a ser sua esposa. Diante daquele
interesse tão intenso e do curto período que vocês se conheciam, resolvi
perguntar a ela se você estava pronto para a experiência do amor, e foi então
que Clara contou-me dos medos que tinha.
Disse que o admirava muito. Ressaltou seu conhecimento, seu
raciocínio sempre brilhante, mas confessou-me com desconserto que por vezes ela
percebia sua incapacidade de apreciar as coisas simples.
Veja bem, meu caro amigo, Clara é afeita à simplicidade.
Herdou de sua mãe um jeito profundo de olhar a vida. Um olhar raro, demorado,
sempre.
Clara possui uma inteligência brilhante, mas descobriu desde
muito cedo o amor pelas coisas simples. Com a morte da mãe, tornou-se
responsável pela casa. Foi então que resolvemos ficar por aqui. Estando já
aposentado como professor na Universidade, pude recolher-me neste meu canto
para dedicar-me totalmente à arte da Jardinagem. Como já lhe disse, foi um
jeito que encontrei de fazer permanecer entre nós a presença de Flora.
Clara ficou comigo por um tempo, mas eu a motivei a estudar
Artes em Paris, e assim o foi. Clara o conheceu por ocasião de suas férias. Sei
que ela não teve nem oportunidade de lhe contar tudo isso, pois ela estava
bastante indecisa se voltaria a Paris para continuar os estudos.
Tudo aconteceu muito rapidamente dentro dela. Contou-me do
encontro casual com você na livraria. Falou-me do livro que vocês pegaram
juntos e de sua gentileza em permitir que ela ficasse com o único volume
disponível.
Achei muito interessante a semelhança dos encontros. Entre
mim e Flora, e entre você e Clara. Ela me contou do café que se seguiu, das
conversas e das características do seu olhar que tanto a fascinaram.
Eu acompanhei os encontros. Sempre que chegava, corria ao meu
encontro para relatar. Depois de duas semanas, numa tarde que já era prenúncio
do inverno que chegaria, numa tarde de outono em processo de agonia, Clara
confessou-me os desencantos com você. Contou-me que chegou à conclusão de que o
homem que ela viu no início dos encontros não existia. Era apenas uma projeção
que havia feito. Um homem imaginado, não real.
Disse-me que você insistia demais em encontrar respostas para
todos os problemas do mundo, e que isso a assustava muito. Ela percebeu que
existia uma diferença abismal no jeito que vocês interpretavam a vida. Clara
não foi educada para as respostas, meu caro, mas para as perguntas. Você se
mostrou muito cheio de respostas, e isso a assustou.
Ela percebeu que ao seu lado ela estava se sentindo uma
mocinha boba, sem atrativos, quase um objeto que você resolveu investigar.
Clara confessou-me que sempre sonhou com um homem como você, mas que existia
uma insensibilidade muito aflorada que ela julgava ser determinante para que
não acreditasse na relação de vocês. Clara o imaginou, e reconheceu ter errado
no que havia imaginado.
Conversamos demoradamente naquela noite. Clara chegou à
conclusão de que você era um homem prático demais para ser transformado em
marido.
Ela não queria arriscar o destino de sua vida ao lado de um
homem que não sabia apreciar as estrelas sem a necessidade de ficar repetindo
as regras que as faziam brilhar. Clara
ficou muito assustada com seu muito dizer, com seu muito explicar. Foi então
que eu sugeri a ela que não continuasse a se encontrar com você.
Ela já estava envolvida demais para continuar estabelecendo
vínculos com alguém que ela julgava tão impróprio para ela.
O tempo de férias acabou e Clara voltou a Paris. Eu inventei
a história do vendedor de flores porque eu já tinha um plano em minha cabeça.
Eu mesmo escrevi aquele bilhete, dizendo-lhe sobre sua partida. Sei muito bem
imitar a letra de minha filha.
Eu tinha os meus motivos para fazer tudo aquilo. Sabia que
Clara não lhe esqueceria. Eu vi a tristeza profunda nos seus olhos no dia em
que ela resolveu lhe deixar, e por isso decidi fazer alguma coisa para tentar
ajudar.
Sempre que falava com ela, procurava saber notícias de seu
coração de mulher. O amor permanecia, mas em nenhum momento Clara perdia a
convicção de que havia feito a coisa certa.
Depois de alguns meses da ida de Clara, e diante da certeza
de que ela realmente o amava, resolvi pedir ao meu amigo da Universidade que
lhe convencesse a um contato comigo. Sabia muito bem que Lamartine, o
professor, tinha acesso direto a você. Clara me contara que era ele o grande
orientador de suas pesquisas. Insisti muito com Lamartine que ele mantivesse o
segredo. Gostaria de saber ao certo o que havia acontecido para que Clara lhe
dispensasse, mesmo sofrendo. Foi então que inventei a história dos manuscritos.
Sabia que você se interessaria em ter a oportunidade de lê-los em primeira mão.
Fiquei muito feliz ao perceber que o plano havia dado certo,
meu caro amigo. Sua primeira carta trouxe-me muita euforia, pois temia que não
aceitasse dividir o sofrimento de seu coração. Lamartine comentou comigo que
você não conversou quase nada com ele, mas com um pouco de tato ele acabou lhe
arrancando algumas confissões.
Foi bonito perceber seu coração por ele mesmo, sem notícia
dada por outros. Ouvir sua honestidade, seu sofrimento tão à flor da pele, e
seu questionamento a respeito de tantas coisas.
E assim passou o tempo. Clara nunca soube do que eu andava
fazendo. Sempre que falava com ela, eu insistia para saber notícias de seu
coração desiludido. Temia que ela se ocupasse de outro, que conhecesse alguém
que lhe desviasse do sofrimento que estava vivenciando.
Eu tinha certeza de que Clara também estava crescendo com
aquela renúncia. Ouvi sempre a mesma resposta: “Pai, eu ainda vou procurar
Alfredo!”. Por isso insisti tanto no plantio de seu jardim. Queria ajudar minha
filha a encontrar o homem que ela intuiu existir dentro de você, meu querido.
Clara o imaginou, mas sei que o que ela idealizou poderia
realmente existir, e que era apenas uma questão de tempo. Intuí que sua
insensibilidade poderia ser vencida com o cultivo de hábitos simples, menores.
É, meu caro amigo, acho que deu certo. Hoje, distante do
tempo em que foi escrita a primeira carta, sinto que o homem que Clara havia
intuído já existe. Ela não estava errada na primeira impressão. Ela não
imaginou nada. Ela viu, mas existia alguns excessos que dificultavam sua
chegada ao lugar que fora visto.
Sinto que ajudei a preparar o homem com quem minha filha
certamente se casará. Fico feliz por saber que o milagre do jardim explodiu no
seu coração da mesma forma que a semente explode na terra. Um novo homem nasceu
pela força das regras das flores.
Meu querido Alfredo, eu recebi no último mês uma carta de
Clara. Ela chegará na próxima semana. Ela o procurará. Disse que precisa lhe
encontrar, ainda que seja para chegar à conclusão de que vocês não poderão
ficar juntos. Clara não sabe de nossos contatos. Não sabe da história de seu
jardim, e peço-lhe que não conte a ela sobre nada do que aconteceu, meu filho.
Estou vivendo os últimos dias de minha vida. Tenho o mesmo
câncer que matou minha esposa, mas estou sendo tratado aqui mesmo, em minha
casa. O médico já me alertou sobre minha situação e disse que não tenho muitos
dias pela frente. Estou saboreando os momentos finais de minha Jardinagem, mas
estou feliz. Não há agonia nesta minha despedida. A cada suspiro, eu agradeço a
Deus por eu existir e ser quem eu sou. Morrerei reconciliado comigo mesmo, e
nisso está minha alegria.
Clara está sofrendo muito com minha partida. Ela sabe de meu
estado. Só agora permiti que ela viesse. Quis ganhar tempo com sua Jardinagem.
Temia que ela viesse e ainda encontrasse o rapazinho tolo, fascinado por
Aristóteles e os banquetes de Platão, e que, desiludida, pudesse concluir que
você realmente não é o homem com quem ela deseja passar o resto dos seus dias.
Meu filho, estou muito feliz por saber que você receberá
Clara de volta em sua vida. Fico feliz por saber que você agora possui um
jardim, e que nele você descobriu um lugar de contemplação. Clara ficará
surpresa. Você é um moço muito inteligente, mas também se revelou muito sábio.
Sabedoria e inteligência, quando juntas, são virtudes que transformam o mundo.
Perdoe-me por ter planejado esta trama. Quis apenas fazer o
bem. Não acho que eu tenha errado. Vejo-o mais feliz, e isso é o bastante para
que eu me exima da culpa de ter mentido para você.
Fique sabendo que de tudo o que deixo neste mundo há dois
valores inestimáveis que gostaria de lhe confiar. Clara e o meu jardim. Eles
foram criados com as mesmas regras. Amei cada movimento que fiz em direção a
eles. Eles serão seus. Cuide deles por mim.
Agora você já sabe. Clara é o raio de sol que irá lhe
visitar...
Preciso ainda dizer. Você foi um plantio profundamente
realizador que pude fazer nesta vida. Só uma coisa eu lamento. Morrerei sem
conhecer o seu rosto.
Com amor e carinho, despeço-me. Definitivamente.
Abner
Meu caro Abner,
Sei que seus olhos não poderão mais ler estas palavras. Não
importa. Meu desejo é simples, e hoje ele é tudo o que possuo.
Não tenho como remeter-lhe minhas últimas palavras. Esbarro
no limite do tempo, que soberano e contínuo define os acontecimentos e a eles
nos condiciona.
Eu escrevo porque andei guardando durante muito tempo este
punhado de palavras, e hoje reconheço que já não tenho mais como segurá-las
dentro de mim.
São palavras demoradas porque elas estão aqui desde a notícia
de sua morte. Já que não tenho correio que possa entregá-las a você, resolvi
sepultá-las num pequeno espaço que cavei no seu jardim. Que ele lhe conte
minhas notícias.
Quando sua última carta chegou, eu não estava na cidade.
Naquela época eu havia demorado alguns dias numa pequena viagem que resolvi
fazer com minha mãe. Quando cheguei, fui surpreendido pela sua carta e, logo em
seguida, pelo recado que meu pai me dera, de que Clara havia procurado por mim.
Conhecedor de toda a história, eu tomei a liberdade de ir
procurar por Clara em sua casa. Quando cheguei, ela estava sentada na escada da
entrada principal. Parecia mergulhada numa tristeza que é própria de quem
perdeu o sentido de tudo. Encorajado pelas suas palavras, e por tudo o que você
me proporcionou saber, aproximei-me sem muito alarde.
Quando ela percebeu minha presença, notei que seus olhos se
iluminaram com a mesma luz que marcou nosso primeiro encontro. Eu fui pleno
naquele instante. Olhei Clara sem pressa. Olhei Clara de um jeito que eu nunca
tinha olhado antes. Ela estava ainda mais bonita!
Não houve demoras, nem formalidades. Abraçou-me com o mesmo
carinho de sempre e disse que eu era tudo o que ela tinha na vida! Naquele
momento eu me recordei da herança que você me deixara: Clara e seu jardim. E
movido pelo aprendizado que meu jardim me concedera, eu assegurei à Clara que eu não a abandonaria
por nada neste mundo. E assim o foi.
Finalmente pude entrar no seu espaço. Conheci sua casa, seu
jardim, sua escrivaninha, seus livros e o velho Argus, o seu amor inútil.
Adentrei o seu espaço da mesma forma que o sacerdote adentra
o seu templo. Minha alma em profunda reverência se pôs a conhecer aquilo que
suas palavras me descreviam. Pude olhar nos olhos de Argus e nele encontrei uma
docilidade que me encantou profundamente. Percebi em cada pequeno espaço de sua
morada a força de sua presença.
Confesso que não pude conter as lágrimas quando percebi que
as frases que você havia escrito entre os canteiros do seu jardim eram frases
retiradas de minhas cartas. Não pude segurar a emoção. Clara não entendeu o meu
sofrimento, mas eu cumpri o nosso plano. Ela nunca soube de nada.
Hoje, passados vinte anos de sua morte, resolvi escrever a
última carta de nossa frutuosa correspondência. Movido por um desejo de
ressurreição, quis rabiscar neste papel as palavras que há tanto tempo estão
engasgadas em minha garganta.
Você não errou em sua análise. Clara e eu nascemos um para o
outro. Minha mudança foi fundamental para que eu pudesse oferecer-lhe o que ela
havia enxergado em mim, mas que por força de minhas limitações eu não deixava florescer.
Nosso namoro durou um ano e dois meses. Continuei meus
estudos e hoje ocupo a mesma cadeira que você ocupou durante tanto tempo na
Universidade. Clara terminou o curso de Artes em Paris e abriu uma floricultura
que tem fama em toda a região pela qualidade do serviço oferecido. Nas horas de
folga, ela ensina pintura na Escola de Artes que abriu e que agora é comandada
por Maria Flor, nossa filha mais jovem.
Trouxemos três filhos ao mundo. Abner, o mais velho, desde os
primeiros anos de escola já manifestou forte inclinação à Filosofia. Carolina,
a filha do meio, desafia-me o tempo todo com seu raciocínio lógico e pouco
sábio. Creio que não terei outro caminho senão obrigá-la a plantar um jardim!
Maria Flor é uma criatura rara. Sinto que ela tem a mesma alma que Clara.
Somos felizes. Preciso dizer-lhe que você é uma lembrança
constante em nossa vida. Em tudo lhe recordamos. Clara se inquietou muito no
início de como eu poderia saber tanto de você. Desviei-me como pude, mas cumpri
o seu desejo de que ela nunca viesse a saber de nossa correspondência.
Não demorei muito para encontrar o lugar em que você
armazenou as correspondências que lhe enviei. Todas elas, minhas e suas, estão
guardadas numa mesma maleta que mantenho sob sete chaves. Tenho o hábito de uma
vez por ano recolher-me num canto da casa e reler todo o processo de nossa
amizade.
Confesso que vejo na correspondência o roteiro do meu
crescimento. Hoje, distante daquelas primeiras palavras, tão marcadas pelo
sentimento de perda e desolação, tão marcadas pela imaturidade que é própria de
quem não enxerga a vida pelos olhos da simplicidade, quero realizar este gesto
final, e que para mim tem valor sacramental. Quero selar nossa correspondência
com esta carta de agradecimento.
Obrigado por ter me retirado do mundo das perguntas absurdas
e inférteis. Obrigado por ter posto em mim o desejo de sair das margens
convencionais da razão e adentrar os controversos e belos caminhos da
sabedoria.
Obrigado por filiar-me ao seu coração de pai, assumindo-me
como filho rebelde que merece carinho para aprender a lição necessária.
Obrigado por ter olhado sem pressa para a pintura da minha vida e nela ter
reconhecido traços que mereciam mais técnica.
Obrigado por ter visto os jardins escondidos na minha alma, e
por tê-los feito florir pela força de um plantio na terra da realidade.
Obrigado por me revelar a sabedoria que reside na arte da
Jardinagem e por ter me ensinado que Deus costuma Se esconder nos jardins.
Obrigado por ter-me feito aventurar no mistério das sementes que aceitam a
morte para que nasça a beleza que delas provém.
Obrigado por ter-me preparado Clara. Alma rara neste mundo
tão marcado pelas almas mancas, raquíticas. Ela, com seu jeito simples de ser
mulher, vive me arrancando de minhas posturas mesquinhas e visões de
superfície.
Obrigado pela herança. Herança humana, herança filosófica,
herança espiritual. Mesmo sem nunca ter sido visto pelos seus olhos, mas
totalmente enxergado pelo seu coração, você fez a minha história ser diferente.
Eu continuo por aqui, meu pai querido. Clarificado pelas
riquezas que já foram suas e que agora são minhas.
Quando tudo parecia irremediavelmente perdido em minha vida,
eu fui encontrado por você. De forma surpreendente, você resolveu me querer
bem.
Chorou e sorriu comigo. Semeou-me de sonhos e esperanças de
um futuro bom. Direcionou os meus olhos para um lugar mais alto, mais bonito e
me convenceu a construir um jardim à frente de minha casa, mas que também
ramificou e floresceu nos territórios de minha alma. Um jardim onde eu aprendi
a mística das esperas. Lugar onde a vida me recriou, como se um movimento
materno me reconduzisse ao ventre, tecendo-me de novo, lapidando-me,
livrando-me dos excessos. Um lugar onde vivi o itinerário do meu florescimento
humano. Um jardim onde eu pude recomeçar.
Florido de alegrias, por aqui permaneço.
Sempre grato, seu filho, pai de seus netos.
Alfredo
FIM
Acabando agora de ler as últimas cartas,com lágrimas nos olhos, tenho o mesmo sentimento de gratidão que Alfredo teve com Abner. Quanta generosidade Eneida teve em compartilhar este livro com os leitores do seu blog de forma tão atual e prática! Eneida é luz para mim e tenho certeza que para muitos! Emocionei-me demais com este final surpreendente. Que Deus continue te abençoando e te guiando neste nobre propósito de polenizar poesia e sabedoria nos jardins espirituais ao redor do mundo! Com admiração e respeito, Elaine.
ResponderExcluirAmiga Elaine. Você é uma pessoa pra lá de especial. De uma sensibilidade e altruísmo que encantam. Igual a você, gratidão, para mim, é palavra de ordem ditada pelo coração. Obrigada pelo incentivo. Muito me estimula. Sim, esse livro tem espaço cativo na minha leitura. Releio sempre e sempre me atualizo. O final é muito extra mesmo. O detalhe é que você tem que necessariamente seguir a sequência do livro, tanto pelos aprendizados, tanto para se surpreender com o final...rssrr
ResponderExcluirP.S. Amei o termo"polenizar". É ou não um luxo transportar coisas boas? kkkkkkkkkk. Obrigada por acessar o blog. Muitos beijos no seu coração!